Uma vez eu entrevistei o simpático artista britânico Dave Gibbons. Não resisti e fiz uma pergunta sobre seu compatriota Alan Moore – afinal, ambos criaram, juntos “Watchmen”, uma das mais icônicas histórias em quadrinhos de qualquer gênero.

– É verdade que Alan Moore abriu mão do que receberia pela adaptação de “Watchmen” para o cinema e orientou que o dinheiro fosse para o sr.? [O filme estrearia dali a uma semana.]

– Sim, é verdade…

E complementou:

– E é muito dinheiro.

Muito é dito sobre Alan Moore, escritor de 66 anos nascido em Northampton, leste da Inglaterra. Ele brigou com os chefões da DC Comics! Ele brigou com os chefões da Marvel Comics! Ele abriu mão dos direitos de todas as adaptações de obras dele para o cinema porque acha que só tem imbecil em Hollywood! Ele odeia os quadrinhos atuais! Ele é fã do Paulo Coelho! Ele é um mago!

Algumas coisas são exageros ou mentiras, mas essa do filme “Watchmen” era verdade. Talvez Moore até goste dessas famas que giram sobre ele: brigão, mas íntegro; intransigente; mago…

Não conheço Alan Moore pessoalmente e, mesmo que conhecesse, não sou sommelier de comportamento.  Mas posso comentar sobre a obra dele em quadrinhos – mídia, aliás, da qual ele anunciou a aposentadoria após escrever o último volume da “Liga Extraordinária”, lançado ano passado.

(Aproveitando, o aposentado Moore é o último nome dos 20 que abordo nessa primeira fase da série Quadrinistas Eternos, dedicada a artistas que deixaram sua marca na nona arte.)

A carreira de Moore nos quadrinhos começou na Inglaterra. Lá, publicou sagas longas, como a divertida ficção científica “A Balada de Halo Jones”; histórias curtas (“Choques Futuristas”, por exemplo); e até uma tira de humor – “Maxwell, o Gato Mágico”, ilustrada, veja você, por ele mesmo.

MIRACLEMAN

Um dos grandes trabalhos de Moore nesse início de carreira, que já abordava temas aos quais retornaria no futuro, foi a saga de super-heróis “Miracleman”. O personagem era um plágio assumido do Shazam: um garoto falava uma palavra mágica e ganhava corpo de adulto e os poderes do Superman. Como? Magia, oras. Simples, fácil e torna qualquer outra explicação desnecessária: magia!

Quando Moore pegou Miracleman para escrever, quis ir além da magia. Em sua história, o governo britânico tem acesso a uma tecnologia alienígena e faz experimentos em três órfãos em coma induzido, visando transformá-los em super-soldados. Coisas ruins acontecem: um deles tem amnésia, outro morre e um terceiro foge, mas esconde do mundo que é uma criatura superpoderosa. Quando o primeiro recupera a memória, tem de lidar com o fato de ser tão poderoso que poderia dominar uma nação inteira. Aliás, por que um deles não tentaria fazer isso?

O excelente trabalho de Moore, especialmente em “Miracleman” (falo dele aqui) e na distopia totalitária “V de Vingança” (vou abordar essa HQ no futuro aqui no Hábito de Quadrinhos), chamou a atenção das editoras grandes dos Estados Unidos. Assim, a DC Comics foi lhe dando, aos poucos, espaço: histórias curtas que, a princípio, não iriam interferir muito na cronologia da editora.

MONSTRO DO PÂNTANO

Assim, com poucas páginas e muita criatividade, Moore conseguiu uma revista mensal para chamar de sua. A editora não lhe deu, de cara, um personagem grande, o que é normal: por exemplo, Grant Morrison começou com o Homem-Animal, Peter Milligan com Shade e Neil Gaiman com o então desconhecido Sandman.

O que, em 1984, caiu nas mãos de Alan Moore foi um personagem de terror desconhecido: o Monstro do Pântano. Quando, no final de 1987, o britânico deixou a revista, não era “só” um dos maiores sucessos de crítica e público da editora. Ele abriu o caminho de que as histórias de super-heróis poderiam mirar o leitor adulto. Foi graças ao Monstro do Pântano que a DC criou o Vertigo, um selo com histórias voltadas ao “público maduro”. Citados no parágrafo acima, Morrison, Milligan e Gaiman, que chegaram na DC Comics depois dele, trilharam essa rota aberta por Moore.

Os poucos mais de três anos de Moore com o Monstro do Pântano foram impactantes para a indústria norte-americana dos super-heróis, mas houve mais. Foi nesse período que Moore publicou “Watchmen”, uma complexa minissérie em 12 números ilustrada pelo já citado Gibbons.

WATCHMEN

Costumo dizer que “Watchmen” é “cubismo dos super-heróis”. Quando Pablo Picasso começou a pintar, praticamente todos os artistas criavam quadros com um único ponto de fuga. Aí o gênio espanhol veio e mostrou: ó, isso aí é legal pacas, mas dá para fazer assim também!

Até “Watchmen” ser lançado (e, para ser justo, o mesmo vale para o contemporâneo “Batman – O Cavaleiro das Trevas”), as histórias de super-heróis eram assim: um super-herói (uniforme, poderes, identidade secreta) vai derrotar um super-vilão. Legal. Mas dá para ser diferente.

“Watchmen” mantém os poderes, identidades secretas e uniformes, mas borra completamente a linha entre heróis e vilões. Nada é mais tão preto no branco. Tudo fica borrado – por que alguém poderoso o suficiente para derrotar um exército não se sentiria tentado a, digamos, desencanar da humanidade e pensar só em si?

Parte desse tema já havia sido abordado em “Miracleman”, mas Moore foi além de muitas maneiras. Para ficar em uma só: você mataria milhares de pessoas baseado na fé de que isso salvaria centenas de milhares?

E TEM MAIS

Até hoje, “Watchmen” é apontada como a obra-prima de Alan Moore (eu também colocaria tanto “Miracleman” quanto “V de Vingança”). Mas ele não parou por aí, claro… Muito do que fez depois é muito bom ou ótimo. Vou tentar elencar só o que considero excelente. 🙂

1988 – Batman – A Piada Mortal: Tudo nessa graphic novel é brilhante. Ela começa com o Batman indo ao Asilo Arkham, onde o Coringa está preso, para ter uma conversa séria: por que eles devem lutar para sempre? Por que não podem ser… aliados? Parece maluquice, certo? Mas, bom, é uma história do Coringa. A melhor delas, na minha opinião. (Arte de Brian Bolland.)

1989 – Do Inferno:  São quase 600 páginas de quadrinhos em torno de Jack, o Estripador e os insoldáveis mistérios ao redor de seus crimes. Além da narrativa brilhante, a edição é sempre acompanhada de comentários de Alan Moore sobre cada página: por que ele colocou tal personagem naquela situação, de onde veio esse diálogo, por que era importante mostrar aquele local etc. (Arte de Eddie Campbell.)

1999 – Liga Extraordinária (seis volumes publicados entre 1999 e 2019): Alan Moore pegou vários livros da literatura universal e imaginou que todos foram ambientados em um mesmo mundo. A série é gigantesca (falo dela aqui) e tem altos e baixos, mas, no geral, é fantástica. (Arte de Kevin O’Neill.)

1999 – Promethea: Série em 32 números que envolve fantasia, espiritualidade, arte, misticismo, cabala, super-heróis, ficção científica, apocalipse e um enredo difícil de ser resumido. (Arte de J.H. Williams III.)

ps – Este post é o 20º (e último!) de uma série chamada “Quadrinistas Eternos”. Em breve, volto com uma nova série de artigos sobre mestres da arte sequencial.

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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