No início de 2011, o Oriente Médio estava em ebulição: revoluções na Tunísia, no Egito e no Iêmen, guerra civil na Síria e na Líbia, manifestações em mais de dez outros países. Esse momento da História foi batizado de Primavera Árabe. E eis que uma cineasta iraniana estava no Brasil para divulgar seu filme. Questionada sobre como o que estava achando das manifestações de seus colegas árabes, ela respondeu:

– Acho a mesma coisa que vocês. Afinal, nós, iranianos, somos persas e não árabes.

Tipish!

Não foi a última vez que nós, brasileiros, fizemos um papelão ao confundir árabes e persas. Falta-nos educação, cultura e, talvez, interesse. Mas este site é sobre HQs, e há uma grande artista iraniana que eu gostaria de recomendar. Ela é o penúltimo nome dos 20 que vou abordar na série Quadrinistas Eternos, dedicada a artistas que deixaram sua marca na nona arte.

A franco-iraniana Marjane Satrapi nasceu em 1969 em Rasht, noroeste iraniano. Ela viveu no Irã até os 14 anos, quando se mudou para a Áustria. Quatro anos depois, retornou à sua terra natal. Aos 24, mudou-se para a França, onde mora até hoje.

Sua contribuição ao universo dos quadrinhos foi curta: lançou seis álbuns de 2000 a 2004. Sua produção foi sucesso de público e crítica e… ela abandonou os quadrinhos! Mas vamos por partes.

Satrapi estreou nos quadrinhos, em 2000, com “Persépolis”. Trata-se de uma obra autobiográfica sobre sua adolescência no Irã: filha de pais comunistas em uma metrópole moderna, Teerã, mas cada vez mais influenciada pela presença de extremistas islâmicos. Seus pais foram perseguidos, e o livro se encerra com ela, aos 14, indo morar sozinha para a Europa.

Os três álbuns seguintes foram continuações da sua autobiografia, com “Persépolis 4”, que encerra a série, saindo em 2003. Depois, vieram mais dois álbuns também de não-ficção: o triste “Frango com Ameixas” e o impactante “Bordados”, em que quatro iranianas conversam com franqueza sobre diversos assuntos.

Os álbuns têm muito em comum, além dos prêmios. Satrapi fala do Irã moderno com um olhar, ao mesmo tempo, crítico e apaixonado, sincero e saudosista, engraçado e dolorido.

As passagens que ela relata mostram muito do comportamento local. Em “Persépolis”, por exemplo, a autora-protagonista é advertida e quase presa por um policial porque, mesmo completamente vestida com a roupa que a lei local obriga, estaria “rebolando”. Em outra cena do mesmo livro, estudantes de arte fazem uma aula de modelo vivo em que, em vez de uma pessoa nua, têm de desenhar uma mulher completamente coberta por uma roupa preta.

Em “Bordados”, uma mulher, mãe de quatro, conta que nunca viu um pênis na vida. Seu marido cobria o órgão nas rápidas relações sexuais, e sua prole é constituída exclusivamente de meninas.

É claro que descrever a realidade é um caminho para a arte que não garante, necessariamente, um bom produto final. Mas a talentosa Satrapi não deixa a desejar. Seus roteiros são envolventes e casam com sua arte que pode parecer simples a um primeiro olhar, mas que traduz com elegância e firmeza o que está sendo retratado.

Quando disse que ela é talentosa, não foi bondade minha. O Festival de Angoulême, o mais importante da Europa quando se trata de quadrinhos, já a premiou algumas vezes: em 2001, como melhor artista revelação (pelo primeiro “Persépolis”); no ano seguinte, melhor roteirista (“Persépolis 2”); em 2004, melhor álbum (“Frango com Ameixas”).

Mais ou menos nessa época, Satrapi aparentemente cansou de ganhar prêmios com seus quadrinhos e optou por ser premiada fazendo cinema.

Seu primeiro filme foi a animação “Persépolis” (sim, adaptando sua graphic novel). Codirigido por Vincent Paronnaud, o longa ganhou o Prêmio do Júri de Cannes (2007), os prêmios César de melhor adaptação e de melhor filme de estreia (2008) e ainda foi finalista do Oscar (em 2008, categoria “animação”).

Seu filme seguinte foi outro longa codirigido por Parannaud – e adaptando um trabalho dela mesma: “Frango com Ameixas”. Dessa vez, não foi uma animação.

Seu longa mais recente, lançado ano passado, adapta uma obra sua: trata-se da cinebiografia da brilhante cientista franco-polonesa Marie Curie (1867-1934). “Radioactive” permanece inédito no Brasil.

Ler os quadrinhos de Satrapi – ou assistir a seus filmes ambientados no Irã – é uma boa experiência artística. De quebra, você vai aprender, para sempre, que persas não são árabes.

Entendeu ou quer que a Satrapi desenhe?

ps – Este post é o 19º (e penúltimo!) de uma série chamada “Quadrinistas Eternos”. Na próxima terça será a vez do britânico Alan Moore. Já publicados:

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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