Quando era mais bem jovem, passei alguns momentos da minha vida tentando explicar que histórias em quadrinhos não são necessariamente para crianças. “Há espaço para tudo!”, eu dizia. Citava exemplos (geralmente começando com “Maus”, de Art Spiegelman). Nunca dava certo. Aí eu apelava para o Japão.

O Japão tem uma indústria enorme e maravilhosa de quadrinhos. Tão grande que, em vez de terem um “Oscar” para as HQs locais, eles têm dois: Kodansha Awards e Shogakukan Awards. O Kodansha, explicava eu, tinha quatro categorias: crianças, rapazes, moças e geral. E o Shogakukan? Idem! Existem quadrinhos para crianças, mas não só, concluía eu. Em vão. Nunca convenci ninguém.

Meus exemplos e minhas discussões não foram nada, nada, nada se comparados aos argumentos do japonês Yoshihiro Tatsumi (1935-2015). Mais do que teorizar, ele praticou. E, em um momento em que os quadrinistas japoneses, largamente influenciados pelo gigante Osamu Tezuka, voltavam-se apenas para o público infantil, Tatsumi foi para outro caminho.

A diferença é gritante, e não estamos falando aqui em qualidade. Mas tanto nos roteiros (mais densos), na arte (mais realista) e, principalmente, nos temas (introspectivos, profundos, às vezes sombrios – a principal revista onde ele trabalhou se chamava “Sombra”), o movimento do qual Tatsumi foi o principal nome destoava dos demais.

Tatsumi até se deu o trabalho de criar um termo para diferenciar o que ele e seus colegas faziam para diferenciar da obra de Tezuka e seus seguidores. Em 1957, passou a chamar de “gekigá” o que fazia, para não confundir com o “mangá” voltado para as crianças e adolescentes.

Importante dizer que Tatsumi não lutou contra os mangás tradicionais. Afinal, há espaço para tudo. Em sua autobiografia, ele narra que, em início de carreira, foi até se aconselhar com Tezuka. O mais influente mangaká de todos os tempos o mostrou um trabalho inédito (que o deixou estupefato – era “Kimba, o Leão Branco”) e lhe deu um conselho valioso: ir além das tiras (seu único tipo de trabalho até então) e pensar em narrativas mais longas. Dá para ver que ele seguiu o conselho: sua autobiografia tem 850 páginas!

O caminho de Tatsumi rumo ao que ele viria a chamar de gekigá não foi fácil, claro. Não havia uma fórmula. Ele foi descobrindo aos poucos. Em sua autobiografia, por exemplo, narra um diálogo que teve com um mangaká. Este, ao ver seu trabalho, reclamou: “Você precisa simplificar. Estilização é a essência do mangá. Você tem que simplificar tudo para não desperdiçar uma linha”. Ainda em início de carreira, Tatsumi respondeu: “Mas isso não é mangá. Estou usando a metodologia do mangá para articular algo inteiramente novo. Não vou usar nenhum tipo de estilização que atrapalhe o que está sendo expresso.”

Mais adiante, conversando com outro quadrinista, Tatsumi desabafa: “Cansei de mangás que só se preocupam com humor e piadas! Pode parecer, agora, uma imitação do cinema, mas eventualmente uma técnica de mangá anti-mangá vai se desenvolver!”.

Há (e houve) outros talentosos artistas nessa luta para abrir os horizontes não só de quem lê, mas também de quem produz quadrinhos. Will Eisner, Scott McCloud e o já citado Spiegelman, por exemplo, fizeram como Tatsumi e se aprofundaram em teoria e na prática para mostrar novas alternativas. Outros japoneses, contemporâneos dele, trilhavam caminhos parecidos. Seu colega Masahiko Matsumoto, por exemplo, passou a colocar o termo “komaga” (painel de imagens, em tradução aproximada) acima do título de suas histórias justamente para diferenciar de mangá.

Tatsumi considerou vários termos para definir seu trabalho, inclusive o já citado “komaga” e “imagens fluidas” (bem próximo do “arte sequencial” cunhado por Will Eisner, aliás), mas ficou com “gekigá” – cuja tradução se aproxima de “imagens dramáticas”.

A escolha do conceito (e do termo) de um tipo de quadrinhos a serem feitos ajudam a explicar a trajetória de Tatsumi, mas é preciso falar de suas obras. Selecionei apenas três livros:

  • “Nevasca Negra” (de 1956): o primeiro trabalho de Tatsumi no formato que ele veio a chamar de “gekigá”. É a história de dois presos que estão algemados um ao outro. O trem onde estão sofre um acidente, e eles escapam.
  • “Abandono da idosa em Tóquio”: antologia com histórias publicadas a partir de 1970. São temas pesados que dificilmente iriam para um mangá tradicional. Uma das histórias começa com a mulher de um limpador de esgoto se separando após ela sofrer um aborto espontâneo. Esse é apenas o primeiro passo no pesado drama do homem.
  • “Adeus”: outra coletânea com HQs curtas dos anos 70. A primeira história começa com a inauguração de uma estátua em Hiroshima que representa o movimento pela paz e contra as armas nucleares. Mas a ação se desenrola e culmina em chantagem, um filho assassinando a mãe em troca de dinheiro e muito desespero.

Há ainda um livro do qual eu gostaria de falar: a autobiografia “Vida à Deriva”. Como esse livro está para ser publicado aqui no Brasil, pela editora Veneta, estou apenas aguardando o lançamento se concretizar para falar dele. Por ora, estou apenas apresentando este artista revolucionário. E que artista!

ps – Este post é o décimo de uma série chamada “Quadrinistas Eternos”. Na próxima quinta será a vez do franco-tunisiano Wolinski. Já publicados:

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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