Nos últimos dois dias, conversamos sobre as duas primeiras versão de Sandman da DC Commics: o vigilante à la Batman (sem poderes) e o herói surreal (muitos poderes, todos atrelados a sonhos e pesadelos). Chegou a vez de falar do personagem que virou série da Netflix, a estrear no dia 5 de agosto.

A DC lançou “The Sandman” em janeiro de 1989. A equipe criativa, que ainda não era tão conhecida, viria a se tornar bem famosa: o roteirista Neil Gaiman, que havia destoado no Reino Unido com sua ótima saga em “Miracleman”, mas que havia feito ainda poucos trabalhos nos EUA; o brilhante artista Dave McKean, que trabalhara com Gaiman em histórias anteriores, mas que atuava como capista; o desenhista Sam Kieth, que acabou deixando a série pouco depois do seu início e desenvolvei trabalhos autorais, como o ótimo “The Maxx”; o arte-finalista Mike Dringenberg; Robbie Busch nas cores; Todd Klein, que ainda não era multicampeão de prêmios, nas letras; e a editora Karen Berger.

Por que citar tantos nomes? Porque foram fundamentais na transformação que viria. Sandman, em todas as encarnações anteriores, fora um super-herói com uniforme, identidade secreta, vilões e até participações em supergrupos da DC. Mas o personagem que estrelava “The Sandman” era tão diferente que sequer se chamava Sandman…

“Sandman”, a revista, era protagonizada por Sonho. Ele não era um humano superpoderoso, embora tivesse poderes divinos, simplesmente por não ser humano. Sonho é a entidade (ou deus, como queira chamar) por trás dos sonhos e pesadelos de todo ser vivo – da humanidade, mas também dos que habitam outros planetas. Aparentemente, existe desde o início do universo, e não pode morrer.

Um personagem tão poderoso como este poderia ser apenas mais um super-herói (ou vilão) da DC Comics. Mas o caminho trilhado por Gaiman foi outro. As primeiras sete histórias da revista (que formam o arco chamado “Prelúdios & Noturnos”) são uma espécie de transição. Sonho ainda vive no mesmo universo de história dos super-heróis (a Liga da Justiça até faz uma ponta), mas não é disso que “Sandman” trata.

O que os leitores começaram a encontrar a partir de 1989 foi uma intricada história que oscilava entre horror e fantasia. Esqueça Lex Luthor, Coringa e o resto da Gangue da Injustiça, eles não são necessários aqui. Gaiman se abasteceu em religiões (os anjos e o Céu, os demônios e o Inferno), mitologias (nórdica, japonesa…) e na própria DC Comics (Lordes da Ordem, Senhores do Caos) para tecer um universo rico, lírico e envolvente – por vezes aterrador.

“Sandman” foi publicado mensalmente por 75 edições. Algumas histórias eram divididas em capítulos (chamado de “arcos”), outras eram independentes. Tudo se encorava no universo criado por Gaiman: o universo tem os mortais (você e eu), os deuses e, além de todos, uma família de sete criaturas que são mais conceitos do que deuses: Destino, Morte, Sonho, Desejo, Delírio, Desespero e o misterioso sétimo irmão. Estes são os Perpétuos, e você ainda vai ouvir falar muito deles, e não apenas cinco parágrafos para baixo.

Eu adoraria falar sobre cada um aqui. São todos maravilhosos, e é aí que está um dos segredos do sucesso de Gaiman: a criação de personagens inesquecíveis e cativantes, recheados de qualidades, defeitos e, especialmente, mistérios. Você os descobre aos poucos – por isso estou evitando falar deles aqui, para que você tenha o prazer de os descobrir assistindo à série ou lendo a HQ (eu sugiro a leitura primeiro, mas gosto é gosto).

Outro segredo de Gaiman é a narrativa. Peça a ele para explicar como se faz uma boa feijoada, e ele vai te explicar com tanto talento que você vai guardar a receita na sua biblioteca.

Há um terceiro fator, este bam mais específico: as citações e homenagens sutilmente distribuídas pelas páginas da série. Elas não estão lá à toa, fazem parte do fio condutor da trajetória do Sonho. Por que o Sandman original que combateu o crime nos anos 30 e 40 adotou este nome? Quem são Bruto e Glob, que ajudaram o segundo Sandman a ser o “Mestre dos Pesadelos” na Dimensão Onírica? Qual a relação do órfão Jed com Bruto e Glob? Por que Hector Hall só virou o terceiro Sandman após morrer? A esposa deste terceiro Sandman se chama Fúria – em que isso pode impactar a história de uma criatura tão poderosa quanto Sonho?

Desculpe, não vou dar as respostas aqui. Seria tirar o prazer da leitura – não sei se todos estes elementos estarão na série, mas acredito que sim.

Há mais elementos ainda que explicam o enorme sucesso (de público e crítica) de “Sandman”, como a temática adulta das histórias e a representação densa e profunda dos personagens humanos – que na maior parte das histórias são os protagonistas, com os Perpétuos relegados a coadjuvantes. Eles são tão incríveis que nós, leitores, torcemos para que ganhem histórias próprias à parte – Johanna Constantine, por exemplo, ganhou uma minissérie muitos anos depois; eu adoraria ler histórias da Rose Walker, uma pessoa tão complicada (e, por isso, comum) quanto você e eu.

A enorme qualidade do Sandman de Gaiman (nas tramas, na profundidade das personagens, na temática) influenciou as HQs americanas – as de super-herói, claro, mas não só. Virou uma obra icônica, um dos raros casos etiquetados de “clássico contemporâneo” que faz jus a tão pomposo título.

Eu poderia listar aqui as 19 vezes em que “The Sandman” foi premiada no Eisner Awards, o Oscar dos quadrinhos norte-americanos, durante seus oito anos de publicação, mas acho que seria me alongar demais. Vale dizer que, apesar de ter sido encerrada em 1996, a série ainda é periodicamente retomada em edições especiais, como minisséries ou graphic novels escritas por Neil Gaiman (que, felizmente, não desandou). Além disso, muitos dos seus coadjuvantes ganharam títulos próprios (revistas mensais, minisséries ou edições especiais), de qualidade variável.

O universo de Sandman é enorme e ainda não está esgotado. A série da Netflix é uma faceta dele, mas ainda há muito que a DC pode fazer pelos Perpétuos e companhia. Sonhos, como sabemos, além de parecerem não terem início, também não têm fim.

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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