Mencionei ontem que cresci em uma casa em que havia quatro quadrinhos à minha disposição: Mafalda, Tintim, Asterix e Lucky Luke. E hoje, na minha lista (subjetiva!) de quadrinistas eternos, vou citar o primeiro deles a brilhar na nona arte: o belga Hergé, criador do Tintim.

Hergé, pseudônimo de Georges Prosper Remi, nasceu em Etterbeek em 1907, e começou a carreira de ilustrador em 1924. Dois anos depois, começou sua primeira série em quadrinhos: “Les Aventures de Totor, C.P. des hannetons” (“As Aventuras de Totor, Líder Escoteiro dos Besouros”). A série acabou em 1929, mesmo ano que Tintim estreou.

Em “Totor”, Hergé ainda estava aprendendo a dosar texto e imagem

As aventuras de Tintim, um jovem jornalista com um topete peculiar, e seu fiel cachorro Milu (em francês, Tintin e Milou) começaram a ser publicadas em capítulos no jornal belga “Le Vingtième Siècle” – só depois viriam a ser reunidas em livros. No total, foram lançadas 24 aventuras com o personagem de 1930 a 83, quando Hergé morreu.

Os quadrinhos europeus (que muita gente, inclusive eu, chama de “banda desenhada”) devem muito a Hergé e Tintim. Primeiro, pela influência na arte: o quadrinista belga desenvolveu uma técnica que hoje é chamada de linha clara (“ligne claire”), com linhas fortes (tanto para contorno das figuras como para as sombras), cores intensas, cenários realistas e personagens caricatos. Atenção: essa é só uma tentativa de explicar a arte de Hergé, não uma “regra universal”: há inúmeras variações da linha clara em artistas posteriores a ele, mas o fato é que todos beberam um pouco na fonte de Tintim.

Outra influência é a forma de aventuras: livros lançados em série (normalmente anualmente) com personagens fixos e roteiros que envolvem aventuras e humor. Quem segue isso? Lucky Luke, Asterix, Blake e Mortimer, Bob e Bobette, Alix… É um ramo dos quadrinhos conhecido como a “escola franco-belga”. Outros quadrinhos europeus, como italianos e ingleses, evoluíram de outra maneira, mas a influência de Tintim no continente é inegável – e imensa.

É fácil entender como Tintim atrai, até hoje, tantos leitores. Além dos divertidos roteiros e da linda arte, Hergé conseguiu criar um universo de personagens cativantes:

  • Tintim: a alma das histórias, com seu coração puro e inteligência.
  • Milu: além de alívio cômico, é tão ou mais corajoso do que Tintim.
  • Capitão Haddock: imprudente, espalhafatoso, involuntariamente hilário… Mas leal e corajoso como poucos. O amigo que todo mundo quer ter.
  • Professor Girassol: estereótipo do cientista maluco… Distraído, sensível e, como Haddock, hilário sem perceber.
  • Rastapopoulos: até o maior vilão cativa pelo humor.
Tintim e, lááá no fundo, o capitão Haddock

Não é muito difícil sintetizar as aventuras criadas por Hergé. Há um trio de protagonistas: o repórter Tintim; seu melhor amigo, o marinheiro boca-suja Capitão Haddock; e o cãozinho valente Milu. Tudo começa sempre com um mistério, e o trio usa muita inteligência para desvelar o fio de segredos à sua frente, com altas doses de humor.

Há um charme a mais: a cada aventura, Tintim viajava para lugares distantes da sua Bélgica. Em tempos pré-Internet, ou até pré-TV, era algo que atraia e despertava interesse. Ele foi, por exemplo, para a então União Soviética, Congo, Estados Unidos, Egito, China, América do Sul… E até na Lua!

As belas capas que mostram Tintim em lugares distantes são emblemáticas. Tenho uma camiseta com a capa de “Tintim em Istambul” e um quadro de “Tintim no Vietnã” aqui em casa. Detalhe: esses livros nunca existiram! É uma brincadeira desses destinos turísticos – ou talvez um desejo de que um dia alguém continue o trabalho de Hergé e situe a história nesses lugares.

Há algo triste e importante a ser dito sobre a obra de Hergé. Os primeiros livros de Tintim são péssimos. “Tintim no País dos Sovietes”, seu livro de estreia, ridiculariza a União Soviética com altas doses de preconceito. Como obra artística, é fraco, muito abaixo das obras posteriores.

“Tintim no País dos Sovietes”

Segundo livro do personagem, “Tintim no Congo” é pior, pois a ilusão da superioridade europeia se soma a racismo.

Nessa aventura, o herói viaja à África para escrever reportagens. Chega ao Congo Belga (hoje, República Democrática do Congo), então uma colônia da Bélgica – curiosamente, na primeira edição portuguesa, o nome foi alterado e virou “Tim-Tim em Angola”, então colônia de Portugal. É nesse ponto que começam os problemas.

Tintim aparece como mais forte e inteligente que os africanos, retratados com inocência infantil e subservientes. Em uma cena, após causar um acidente que derruba um trem, ele convence os congoleses a colocar a máquina de volta aos trilhos sem que ele mesmo precise fazer força. Em outra, o jornalista substitui o professor dos jovens africanos e leciona aos congoleses sobre a sua “pátria, a Bélgica”. Quando Tintim volta à Europa, os africanos criam um ídolo de madeira para adorá-lo como se fosse um deus.

Mudança na arte e no roteiro de “Tintim no Congo”: a aula sobre “nossa pátria, Bélgica” foi trocada por lições de matemática

Hergé relançou muitos dos seus primeiros livros, alterando a arte, a capa e trechos do roteiro. Mesmo assim, quando “Tintim no Congo” foi lançado pela editora Egmont na Inglaterra, em 2005, trazia um aviso dizendo que o livro tinha estereótipos e que alguns leitores podem considerá-lo ofensivo. Depois, a Comissão para Igualdade Racial (CRE) ainda pediu às livrarias britânicas que retirassem de suas prateleiras a HQ, devido ao conteúdo racista.

Cabe a cada leitor decidir se releva isso ao ler essas edições – ou se sequer as lê, claro. Eu os tenho aqui em casa, mas acho que são péssimos – assim como o terceiro livro, “Tintim na América”. Depois, entretanto, melhora bastante. Tanto na arte como no roteiro, os livros seguintes alcançam um nível de excelência difícil de ser alcançado entre as bandas desenhadas.

Há até uma tentativa de redenção: ao longo da série, Tintim faz amizade com o chinês Tchang Chong-Chen (inspirado em um amigo real de Hergé, o artista Zhang Chongren) e reflete sobre racismos, preconceitos e respeito a todos. É uma obra contínua, que tenta se redimir dos erros passados, sem negar que eles existiram.

Um momento de surpresa em “O Segredo do Licorne”

Quando morreu, Hergé deixou para trás livros incríveis. Seria até injusto tentar citar o melhor deles para encerrar esse texto.

Os mistérios de “As 7 Bolas de Cristal“? A primeira aparição do engraçadíssimo Haddock em “O Caranguejo das Pinças de Ouro“? O humor de “As Jóias da Castafiore“? A imprevisível saga de “Voo 714 para Sydney“?

Mas… Por você, que acompanha o Hábito de Quadrinhos, talvez eu faça esse esforço descomunal de reler os melhores livros do Tintim e tente achar meus favoritos… 😉

ps3 – Este post é o oitavo de uma série chamada “Quadrinistas Eternos”. Na quinta será a vez da dupla francesa Goscinny e Uderzo, os criadores dos Asterix. Já publicados:

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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