A editora Devir está lançando no Brasil “A Tempestade”, o último volume da gigantesca série dos britânicos Alan Moore e Kevin O’Neill chamada “Liga Extraordinária”. É uma boa oportunidade para conversarmos um pouco sobre o que já saiu nos 20 anos de publicação da obra.

Afinal, não é toda obra que homenageia de “Drácula” a “Harry Potter“, passando por Shakespeare, Rolling Stones, “A Ópera de Três Vinténs“…

A publicação da Liga Extraordinária começou em 1999 e teve seis fases diferentes até sua conclusão, no ano passado.

1 – A Liga Extraordinária – minissérie em seis números (1999-2000)

A base de tudo. Alan Moore pegou vários livros da literatura anglófona e imaginou que todos foram ambientados em um mesmo mundo.

Como a história se passa em 1898, os protagonistas são cinco personagens retirados de livros lançados no século 19: Mina Harker, sobrevivente dos ataques do personagem-título de “Drácula”; o Capitão Nemo de “Vinte Mil Léguas Submarinas”; Alan Quarterman, de “As Minas do Rei Salomão”; e os protagonistas de “O Homem Invisível” e “O Médico e o Monstro”.

Eles acabam formando um grupo de super-heróis (sim, super-heróis) subordinado ao governo britânico. É como se um escritor brasileiro criasse uma HQ em que o Império de D. Pedro 2º contasse com os agentes especiais Sargento Leonardo (de “Memórias de um Sargento de Milícias”), Peri, Ceci e Caramuru – comandados, claro, pelo burocrata Dom Casmurro.

Parte da graça está em ver os protagonistas interagindo com um monte de outros personagens da literatura: Ishmael (de “Moby Dick”), o inspetor Dupin (criado por Edgar Allan Poe) e, claro, Sherlock Holmes.

Isto é, entretanto, só parte da graça. O principal está no roteiro de ação costurado por Alan Moore: é uma trama envolvente, inteligente e divertida. Os personagens não são planos, mas dúbios (talvez até maus) e intrigantes, com mais de uma camada.

E, sim, dá vontade de ir atrás dos livros originais.

2 – A Liga Extraordinária – Volume 2 – minissérie em seis números (2002-03)

Continuação direta da aventura anterior, ainda com os mesmos protagonistas. Esta trama é calcada em basicamente dois livros: “A Guerra dos Mundos” e “A Ilha do Dr. Moreau”.

Este volume não tem mais a novidade do original. Na minha opinião, também não é tão inteligente. Fica uma trama mais óbvia, quase simples. Encantado com a série original, talvez eu tenha esperado demais dessa.

3 – A Liga Extraordinária – Dossiê Negro – graphic novel, volume único (2007)

Este volume traz várias diferenças em relação ao anterior, além do formato (uma edição única em vez de uma minissérie). Primeiramente, a trama chegou ao século 20: a história começa em 1958. Os protagonistas também não são os mesmos: dois dos originais se somam a Orlando, personagem-título do livro de Virginia Woolf lançado em 1928. Na comparação brasileira, é como se Peri e Ceci recebessem o auxílio de Capitão Rodrigo e Macunaíma, por exemplo (personagens criados na primeira metade do século 20).

Há dois pontos que valem a pena serem ressaltados: o roteiro volta a ser surpreendente e cativante.

Além disso, Alan Moore passa a ousar na maneira narrativa. OK, é uma história em quadrinhos, mas há um capítulo narrado em uma prosa que homenageia H.P. Lovecraft; uma peça escrita por William Shakespeare (falsa, obviamente); um capítulo em 3-D (que faz sentido ser assim, pois se passa em uma dimensão fantástica); uma sequência que emula as “tijuana bibles” (revistas pornográficas pequenas e baratas de meados do século 20, que lembram os “catecismos” de Carlos Zéfiro) etc.

Essa diversidade e riqueza narrativa – que se estende na arte, fazendo O’Neill ter de mudar de estilo em alguns capítulos – coloca este “Dossiê Negro” em outro patamar, tão inventivo e surpreendente quanto o original.

4 – A Liga Extraordinária – Volume 3: Século – três graphic novels (2009 a 2012)

O novo volume se parece muito com o segundo, na minha opinião. Sem tantas inovações no roteiro, acaba divertindo mais pelas dezenas (centenas?) de personagens que pipocam. Eles não são oriundos apenas da literatura, mas também do teatro (“A Ópera de Três Vinténs”), séries de TV, HQs, da música (há referências aos Rolling Stones)…

No equivalente brasileiro, seria colocar todos juntos no mesmo mundo: Ceci, Peri, Zé do Burro (da peça “O Pagador de Promessas”), Capitão 7 (pergunte a seus avós!), Turma da Mônica, Secos & Molhados…

Harry Potter, ainda que não com esse nome, aparece em “Século” de uma maneira que chocaria os fãs do bruxinho (e não por ele estar pelado e urinando em público).

5 – A Liga Extraordinária – Trilogia Nemo – três graphic novels (2013 a 2015)

Embora se passe no mesmo universo das séries anteriores, esta se distancia um pouco: o foco sai da equipe principal e vai para Janni Dakkar, a filha do Capitão Nemo, membro do grupo original. São três aventuras que, assim como “Século” (o volume anterior), não trazem tantas inovações, embora as dezenas de homenagens a livros e personagens continuem.

Na nossa comparação, seria como se o foco se desviasse para as aventuras que a filha de Caramuru teria tido no nordeste do Brasil, convivendo com sargento Getúlio (do João Ubaldo Ribeiro), Antônio das Mortes (do Glauber Rocha) e a inesquecível dupla Pedro e Bino (de “Carga Pesada”).

6 – A Liga Extraordinária – Volume 4: A Tempestade – minissérie em seis números (2018-19)

A conclusão: não vou me aprofundar muito, mas há uma mistura impressionante de estilos narrativos e personagens. Se fosse no universo brasileiro, imagine um capítulo narrado em literatura de cordel, outro em fotonovela, um terceiro emulando a arte do Maurício de Sousa… E, além de todos os personagens anteriores, muitas novas aparições por páginas, do personagem-título de “O Alquimista” à personagem de Carolina Ferraz na novela global berrando “eu sou rica!!!”.

Mas o comentário mais profundo deste volume ficará para a crítica, a ser publicada em breve. Este texto foi só para dar um gostinho do que é esse universo, com um discreto parabéns a Alan Moore e Kevin O’Neill nesta gigantesca empreitada.

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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