Quando eu tinha oito anos e estava na terceira série (hoje, quarto ano), a professora deu uma lição deliciosa: desenhar.

Eu me esmerei. Cresci em uma casa com ótimas opções de quadrinhos (Quino, Tintim, Asterix e Lucky Luke) e amava desenhar. Fiz várias ilustrações com pombas e crianças pedindo a paz mundial.

Fiquei muito feliz… Até a professora ver os meus desenhos e dar uma gargalhada desdenhosa e desagradável. Aparentemente, achou bobo um menino qualquer sair por aí preocupado com essas coisas, tipo a paz mundial.

Eu me senti um estranho, e não foi a primeira vez.

Não contei para meus pais ao chegar em casa. Em vez disso, fui ler quadrinhos. E lá estava com um livro da “Mafalda” em minhas mãos. Numa delas, ela desenhava pombas e pedia a paz mundial. Por que ela podia e eu não?

Hoje conhecido como Quino, Joaquín Salvador Lavado Tejón, nasceu em Mendonza, na Argentina, em 1932, e tem dupla nacionalidade: é argentino e espanhol. Começou a trabalhar como ilustrador em 1954, e em 1963 criou aquela que seria sua mais famosa personagem: a Mafalda.

Uma curiosidade: a pequena menina faria parte de uma campanha de publicidade para uma empresa de eletrodomésticos. A campanha nunca foi ao ar, e Mafalda ganhou uma tira própria, publicada de 1964 a 1973 em jornais argentinos.

Quino parou de criar tiras da Mafalda há quase 50 anos, mas ela se tornou um personagem tão enorme que pouco se fala da obra dele sem ela. Trata-se de um trabalho igualmente brilhante (falo sobre ele aqui). Mas o que levou essa pequena menina a tamanho sucesso?

Não me parece difícil entender o que atrai, até hoje, tantos leitores para essas histórias. Antes de tudo, são hilárias. Mas há o carisma da personagem – e, para quem não a conhece, aqui vai uma pequena apresentação: Mafalda é uma menina argentina, de idade indefinida, inteligente, contestadora, rebelde por natureza.

Se você tem uma criança de 5 a 9 anos por perto, ou já teve, certamente achava graça de suas contestações e perguntas.  E Mafalda dava uma dessas por dia nas tiras de jornais.

Não havia um tema sem que ela tivesse uma posição contundente – e muito engraçada. Podia ser o desemprego, a recessão econômica na Argentina, os motivos insondáveis (para ela) que impediam a ONU de acabar com todas as guerras do mundo…

A pequena menina queria a paz mundial e, para ela, os adultos não estavam se esforçando o suficiente. Não sei se dá para ver aí, mas, no fundo, quando eu fiz aqueles desenhos alvos de desdém da minha professora, eu só queria ser tão inteligente e contestador quanto a Mafalda…

Além da protagonista, as tiras ainda eram povoadas por um rol maravilhoso de personagens:

  • o pai, tão preocupado com sustentar a família quanto em responder as improváveis e difíceis perguntas da filha;
  • a mãe, Raquel, ocupadíssima ao tomar conta de casa e ainda alvo de questionamentos da Mafalda sobre o lugar da mulher na sociedade (sim, assuntos sérios cabiam na tira);
  • Guille, o irmão mais novo, que nasce quando a tira já é um sucesso e é tão fofo quanto a própria Mafalda;
  • a amiga Susanita, cujo único desejo na vida é conseguir um bom marido;
  • o amigo Felipe, com quem sempre me identifiquei: amava histórias em quadrinhos e vivia no mundo da fantasia – aposto que também era alvo de chacotas da professora;
  • Manolito, filho de um comerciante espanhol, puro de coração, mas com uma preocupação acima da média com dinheiro;
  • e Libertad, a última a surgir na tira, tão contestadora (e hilária) quanto a própria protagonista.

O primeiro livro com as tiras da Mafalda foi publicado em 1966, dois anos após o “nascimento” da personagem. A menininha contestadora já era um fenômeno local, e a edição se esgotou em dois dias.

A tira acabou em 1973, mas seis anos depois o Unicef convidou Quino para ilustrar os direitos fundamentais das crianças. O resultado, lindo, está aqui, e mostra que o tamanho da Mafalda vai além da América Latina.

Reler a Mafalda, hoje, é incrível. O humor não perdeu a graça, as contestações ainda fazem sentido, e o mundo que ela tanto criticava não melhorou. Ou seja: questionamentos e humor ainda se fazem necessários. Viva a Mafalda!

ps – adoro quadrinhos argentinos. Por isso, recomendo o livro “Bienvenido – Um Passeio pelos Quadrinhos Argentinos”, do meu amigo Paulo Ramos, jornalista, doutor e profundo estudioso de quadrinhos.

ps2 – Este post é o segundo de uma série chamada “Quadrinistas Eternos”. Ontem foi a vez de Charles Schulz, e amanhã conversaremos sobre a dupla Stan Lee e Jack Kirby.

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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