Há dois anos, tive uma oportunidade rara de ir ao Japão. Fã que sou de quadrinhos (e, portanto, de mangás), fiz uma lista de sete obras que gostaria de trazer. Uma delas, em particular, me atraia bastante: era feita por uma precursora mangaká, anterior a Osamu Tezuka (1946-89).

Entrei em uma livraria grande de Tóquio e mostrei um papel com o nome. Escrito em nosso alfabeto, não foi reconhecido, mesmo com o esforço de três simpáticos atendentes. Peguei o celular, digitei o nome na Wikipedia, passei a língua de inglês para japonês e mostrei para eles. Imediatamente, os três rostos sorriram felizes: todos conheciam “Sazae-san”, a obra-prima de Machiko Hasegawa (1920-92).

“Sazae-san” é uma série de humor que retrata a vida de Sazae Fuguta, 27, e sua família. São histórias simples e engraçadas, contadas em um painel de quatro quadros. Trata-se de uma espécie de sitcom familiar: tudo se passa ao redor da família de Sazae.

Alguns números mostram o tamanho do sucesso de Machiko Hasegawa. Primeiro, o mangá. São 28 anos de duração contínua, de abril de 1946 a fevereiro de 1974, quando a autora se aposentou. A coleção que reúne a obra completa tem 45 volumes, num total que se aproxima de dez mil páginas.

(Tenho apenas o primeiro desses volumes, em japonês, e já me considero feliz… Tanto o mangá quanto o animê que o adapta são inéditos no Brasil.)

O mangá “Sazae-san” encantava pela simplicidade, pelo humor e até pela inocência. E, claro, pelo tema: o cotidiano de uma pessoa normal. Sabe o “menos é mais”? Então, não é preciso ter superpoderes (como o Astro Boy) ou ser o melhor do mundo naquilo que faz (como Ashita no Joe) para fazer com que o leitor se identifique. Até porque, claro, pouquíssimos são tão campeões como Ashita no Joe e absolutamente ninguém é como o Astro Boy.

(E que fique bem claro: não estou menosprezando essas duas séries. Há espaço para tudo, e eu particularmente adoro ambas.)

Quando o mangá começou a ser publicado (1946), Sazae era uma adolescente no Japão pós-Guerra, ocupado pelos Estados Unidos. Ela cresceu, casou-se com Masuo Fuguta e teve um filho, Tarao Fuguta.

O fato é que a humanidade de Sazae Fuguta agrada e atrai. Ela erra, acerta, resmunga, elogia, se esforça para ser feliz, é levemente mandona, ama seu marido e sua família. E isso levou ao sucesso da tira… e a uma adaptação para a TV.

E o animê tornou-se um sucesso ainda maior. Foi ao ar de outubro de 1969 até… Bem, até hoje. São mais de 50 anos no ar, com mais de 2.500 episódios exibidos – como cada um narra de 2 a 3 histórias, são mais de 7.000 aventuras já contadas. Está até no “Guinness – O Livro dos Recordes” como a mais longeva séria animada. Nem o coronavírus a cancelou, apenas provocou um hiato.

E, claro, não parou por aí. A simpática Sazae-san também virou música, peça, radionovela e museu (em Tóquio).

Quem diria que mostrar o lado cotidiano de nós, seres humanos, faria tanto sucesso?

ps – Este post é o 16º de uma série chamada “Quadrinistas Eternos”. Na próxima quinta será a vez das italianas Angela e Luciana Giussani. Já publicados:

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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