Quando eu era criança (e, depois, adolescente), adorava ir a bancas velhas de jornais. Sabe, aquelas com revistas atrasadas penduradas, meio caindo aos pedaços? Essas mesmas. Porque lá era mais fácil achar raridades: revistas antigas que não foram recolhidas pelas editoras.

Acho que quem é colecionador, mais do que leitor, vai concordar comigo. Ler uma HQ nova é muito legal; achar uma obra rara, mais ainda.

Numa dessas andanças, eu estava na Vila Sabrina e entrei em uma banca velhinha. Saí de lá com uma HQ barata, com um personagem do qual eu nunca havia ouvido falar: Miracleman. Era de uma editora pouco conhecida, com um papel estranho, um tamanho de gibi que eu nunca havia visto, e a revisão parecia ter sido feito com pressa (fiquei com a impressão de que algumas palavras foram coladas sobre outras).  Para piorar, na capa ele era chamado por dois nomes: Miracleman e Jack Marvel. Fui ler sem muita expectativa.

Miracleman se revelou uma das melhores histórias de super-heróis que já li na vida.

Pode ter sido uma avaliação infantil de quem havia lido pouca coisa? Sim, claro. Mas vamos falar um pouquinho da publicação desse personagem.

A série “Miracleman” é curta – apenas 27 histórias foram publicadas, e aquela editora brasileira lançou apenas as quatro primeiras delas. Curiosamente, cada número da revista brasileira saiu com um tamanho diferente, dando a impressão de ser um trabalho não muito profissional, provavelmente feito pelo amor do editor pelo herói.

Adulto, resolvi completar a coleção. A série “Miracleman” é envolvida em várias confusões judiciais (vou te matar de tédio se narrar aqui). Sua republicação era proibida em qualquer lugar do mundo (não sei como a editora brasileira conseguiu lançar aqueles quatro números).

Levou anos e deu trabalho, mas consegui. E li os 27 números de cabo a rabo.

Miracleman se revelou uma das melhores histórias de super-heróis que já li na vida.

As primeiras 16 histórias foram escritas pelo espetacular Alan Moore em início de carreira, e são normalmente agrupadas em três arcos: “Sonho de Voar”, “A Síndrome do Rei Vermelho” e “Olimpo”.

Um contexto antes do resumo: Miracleman se chamava Marvelman – ele é um plágio do Capitão Marvel (explico esse rolo aqui). Quando Alan Moore pegou Miracleman para escrever, quis ir além do Capitão Marvel. Em sua história, o governo britânico tem acesso a uma tecnologia alienígena e faz experimentos em três órfãos em coma induzido, visando transformá-los em super-soldados.

Coisas ruins acontecem: um deles tem amnésia, outro morre e um terceiro foge, mas esconde do mundo que é uma criatura superpoderosa. Quando o primeiro recupera a memória, ele tem de lidar com o fato de ser tão poderoso que poderia dominar uma nação inteira. Aliás, por que um deles não tentaria fazer isso?

A fase de Alan Moore em “Miracleman” lembra um pouco “Watchmen”, do mesmo autor. Se alguém tivesse os poderes do Capitão Marvel (ou do Doutor Manhattan, ou do Superman), como ele trataria a humanidade? Moore propõe respostas diferentes nas duas obras. Para mim, ambas são igualmente espetaculares.

As histórias seguintes de Miracleman foram escritas por outro então principiante: Neil Gaiman. Ele havia planejado 18 aventuras, a serem divididas em três arcos com seis histórias: “A Idade de Ouro”, “A Idade de Prata” e “A Idade das Trevas”. Entretanto, apenas as oito primeiras saíram – além dos problemas judiciais, a editora ainda enfrentou questões econômicas.

As outras três histórias já publicadas não foram escritas por Moore ou Gaiman e saíram em edições especiais.

Como a fase de Gaiman é inédita no Brasil, não vou fazer resumo para não dar spoiler.

Após muuuita disputa judicial, a Marvel Comics conseguiu o direito de publicar “Miracleman” nos Estados Unidos – e, portanto, o resto do mundo também poderia ler. Portugal publicou a saga em dois volumes: um para a fase de Moore, outro para a de Gaiman. São lindos.

No Brasil, a editora Panini começou a lançar Miracleman mensalmente. Apesar da qualidade de sempre, apenas os 16 primeiros números (a fase de Moore) saiu. Nem sinal da de Gaiman. Por quê? Provavelmente vendeu pouco… De novo, por quê?

A fase de Alan Moore em Miracleman é uma das melhores histórias de super-heróis que já li na vida.

A fase de Neil Gaiman em Miracleman é uma das melhores histórias de super-heróis que já li na vida.

Por que a série não saiu aqui até o final? Não sei a razão – repare, o título deste artigo é uma pergunta, não uma afirmação. Vou arriscar alguns fatores.

– Miracleman é um personagem pouco famoso. Não virou desenho animado, série de TV ou filme. Além disso, as pouquíssimas edições que saíram no Brasil tiveram tiragem baixíssima. Quem não conhecia Miracleman pode não ter se interessado pelo que viu na banca.

– O tema da história é o abuso de um ser superpoderoso. Era original quando saiu, em 1982. Será que não desperte tanto interesse após obras como “Watchmen” (do mesmo Alan Moore), “Poder Supremo” (que tem até uma homenagem direta a Miracleman), “Wanted”, um montão de histórias de Vingadores, Liga da Justiça, Homem de Ferro, Superman…

– A concorrência. Mesmo que o fã de super-herói conheça Miracleman, o que ele vai querer comprar: uma série completamente desconhecida, e sem nenhuma ligação com os personagens dos quais gosta (Vingadores? Liga da Justiça), ou uma revista com heróis menos famososo (Garota-Esquilo? Renegados?), mas que pelo menos pertencem à Marvel ou à DC?

Não tenho as respostas, mas tenho as edições americana e portuguesa completas. Mesmo assim, adoraria que a fase de Miracleman por Neil Gaiman saísse aqui no Brasil.

Please follow and like us:

Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

Quer falar comigo, mas não pelos comentários do post? OK! Meu e-mail é pedrocirne@gmail.com

LinkedIn: https://br.linkedin.com/in/pedro-cirne-563a98169