Já contei essa história aqui no Hábito de Quadrinhos, mas como sou muito fã do Will Eisner, peço licença para a repetir – com mais detalhes.

Uma vez, já jornalista e trabalhando em uma redação, aos 23 anos, liguei para o escritório do Will Eisner para pedir o endereço para correspondência. Queria mandar uma carta para ele, algo bem mais pessoal do que um e-mail – especialmente naquela época.

Perguntaram se eu queria falar com o próprio, respondi que não queria incomodar, que já tinha o que precisava… E passaram o telefone mesmo assim. E Will Eisner, um dos meus maiores ídolos, pegou o telefone e disse:

– Oi, Pedro, que bom falar com você de novo!

Eu o havia entrevistado uns dois anos antes. Eu sabia disso, claro. Mas, como assim, ele se lembrava de mim?

Gaguejei, confesso. Não esperava falar com Eisner naquele momento. E ele, simpático como sempre, conversou comigo numa boa.

Não sou o único leitor de quadrinhos que tem William Erwin Eisner (1917-2005) entre seus maiores ídolos. Se checarmos entre os grandes mestres dos quadrinhos, aliás, ele será uma referência constante: Alan Moore, Neil Gaiman, Maurício de Sousa, Frank Miller… Todos são fãs dele.

Mas o que leva ele a ser tão reverenciado?

A resposta mais simples é: Eisner era ótimo escritor e ótimo ilustrador. Também lecionou quadrinhos (na School of Visual Arts, de Nova York) e escreveu dois livros sempre recomendados para quem quer entender melhor as HQs: “Quadrinhos e Arte Sequencial” (1985) e “Narrativas Gráficas” (1996).

Certo. Mas “só” isso explica?  Acho que não… Embora eu não possa falar pelos grandes nomes dos quadrinhos, consigo traçar aqui alguns fatos e característica que podem ajudar a explicar.

Eisner tem duas grandes fases nos quadrinhos. Na primeira, criou seu principal personagem: o Spirit, que estreou em 2 de junho de 1940. Os Estados Unidos viviam a Era de Ouro dos Quadrinhos. Você abria a janela e entrava um gibi com um super-herói original; tropeçava na rua e encontrava uma HQ nova, estrelada por alguém com máscara e identidade secreta; ia a uma loja se abrigar da chuva e lá haveria uma revista com um superpoderoso reluzente na capa.

Enfim, os super-heróis reinavam. E Eisner entrou nessa… do jeito dele. O Spirit tinha identidade secreta, uniforme e força e resistência acima da média, mas suas histórias não se comparavam às dos demais. Eram HQs curtas (oito páginas) e que primavam por uma ação mais leve e divertida.

Mais do que isso: as histórias eram requintadas. Havia recursos como um narrador ora lírico, ora filosófico, ora hilário; a arte era diferenciada, elástica, nada presa às convenções do gênero dos super-heróis; e até a tipologia era importante. Durante uma forte chuva, as letras podiam emular as gotas que caiam; se a noite estava muito escura, o balão com a narração acompanhava o clima sombrio. Se o personagem caia… bom, temos o exemplo abaixo.

E havia até uma brincadeira até hoje associada ao personagem: a página de abertura sempre trazia o nome do protagonista diluído no cenário.

Em qualidade, talvez o único que rivalizasse com Eisner na Era de Ouro, dentro do gênero dos super-heróis, era Jack Cole e seu fantástico Plastic Man (no Brasil, Homem-Borracha).

Seus pares reconheceram o talento de Eisner em vida. Por três vezes ele foi eleito o melhor da categoria pelo Sindicato Norte-Americano de Cartunistas: em 1967, 68 e 69. Internacionalmente, também: ele venceu, em 1975, a segunda edição do Festival de Angoulême, o mais relevante da Europa.

Essa fase inicial, por si só, fez com que Eisner merecesse seu lugar no panteão dos quadrinhos. Mas ele queria mais.

Estamos no final dos anos 70: 1978, mais precisamente. Enquanto a maior parte das HQs norte-americanas era voltado para o público juvenil –com os roteiros pasteurizados pelo imbecil Código de Ética-, havia uma dificuldade em conseguir publicar obras em quadrinhos destinados a adultos. Eisner começou a contornar isso definindo seus novos trabalhos como “graphic novels” – o termo já existia antes dele, mas foi ele quem o popularizou.

As “graphic novels” de Eisner eram histórias maduras e inteligentes, diferentes até no formato: era encadernadas como livros. A ideia era ir para uma seção das livrarias diferentemente da que abrigava as revistas mensais com suoer-heróis ou personagens de humor. Não eram edições baratas e leves, que poderiam ser facilmente descartadas.

Essas “graphic novels” mereciam um tratamento diferenciado por parte do editor e do leitor, que poderia a deixar em destaque na estante, ao lado romances, livros de poesia etc. Enfim, os quadrinhos norte-americanos finalmente começariam a ter o status de arte digna que seus colegas europeus tinham havia décadas.

O termo se popularizou de tal maneira que, hoje, há livrarias que separam “graphic novels” em uma seção e revistas (ou “comics”) em outras.  

A primeira “graphic novel” de Eisner foi “Um Contrato com Deus e outras histórias de cortiço”, lançada em 1978. Depois, vieram muitas outras. Eu, particularmente, acho espetaculares “Um Sinal do Espaço” (1978), “Nova York – A Grande Cidade” (1986), “O Edifício” (1987) e “Ao Coração da Tempestade” (1991).

Mais uma vez, os pares reconheceram o que Eisner fazia pelos quadrinhos. O Sindicato de Cartunistas o elegeu o melhor dos Estados Unidos em mais duas ocasiões: em 1987 e 88. Nessa mesma década, foi criado o Oscar dos quadrinhos norte-americanos. Quer saber se ele o recebeu? Sim, mas mais do que isso. Ele o batizou: o prêmio se chama Eisner Awards.

Na Faculdade de Letras, uma professora ensinou que não nos bastava ler livros sobre Guimarães Rosa: precisávamos ler os livros do Guimarães Rosa. Para entender por que Eisner influencia, até hoje, tantos quadrinistas, seria bacana ler algumas obras dele. De preferência, das duas fases: um pouco de Spirit e alguma “graphic novel”.

ps – Este post é o 18º de uma série chamada “Quadrinistas Eternos”. Na próxima quinta será a vez da franco-iraniana Marjane Satrapi. Já publicados:

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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