O argentino Héctor G. Oesterheld é um dos mais brilhantes roteiristas de quadrinhos que já existiu. O final de sua vida foi trágico e tem a ver com sua obra artística.

Oesterheld (1919-78) criou roteiros inteligentes e personagens originais, como o imortal Mort Cinder e o misterioso Sherlock Time. Também foi um militante da esquerda peronista. Seus quadrinhos questionavam o mundo ao seu redor. Por exemplo, veja esse resumo:

Poderosos e bem armados, eles vieram e acabaram com a nossa democracia. Foi surpreendente e rápido, da noite para o dia. Somos civis não treinados, como poderíamos confrontá-los? Seus veículos são grandes e fortes, suas armas são mortais. Quando tentamos descobrir o que estava acontecendo, só piorava: eles eram apenas braços de uma organização militar bem maior e aparentemente invencível.

A que se refere o parágrafo acima? Será sobre a ditadura militar que se estabeleceu na Argentina de 1955 a 1959? Ou à HQ “O Eternauta”, escrita por Oesterheld e publicada de 1957 a 59 – ou seja, em meio a esse período?

Mas será que o resumo se refere a outro período de ditadura militar argentina, o que foi de 1966 a 1973? Ou será sobre uma nova versão de “O Eternauta”, reescrita por Oesterheld e lançada em 1969, no meio de mais essa ditadura?

Mais duas opções: será sobre outra ditadura militar argentina, essa iniciada em 1976? Ou sobre a continuação batizada de “O Eternauta II”, publicada exatamente a partir de 76?

“O Eternauta” é uma ficção científica maravilhosa que funciona como alegoria política da sociedade em que foi escrita. Há o peso da opressão e da ditadura, um medo de dificultar a capacidade de respirar, e humanos comuns tentando lidar com isso. Uma obra-prima.

De 1976 a 78, a monstruosa ditadura argentina sequestrou e matou Oesterheld, suas quatro filhas (duas delas estavam grávidas) e dois de seus genros.

O corpo de Oesterheld nunca foi encontrado.

É uma história trágica, horrível.

Há um cartaz, criado em 1983 pelo artista Felix Saborido e publicado na revista “Feriado Nacional”, que coloca os personagens do grande roteirista levando uma faixa que diz: “Onde está Oesterheld?”.

Volta em meia, vejo na TV reproduções desse cartaz sendo levadas a manifestações políticas na Argentina.

O legado profissional de Oesterheld é incrível. Resumo aqui algumas de suas obras e deixo, desde já, um convite para conhecer “O Eternauta”.

  • “Sargento Kirk” (de 1953) – História ambientada no Velho Oeste norte-americano, segue o sargento Kirk, homem que deserda ao presenciar um massacre de índios. Ilustrado inicialmente pelo italiano Hugo Pratt.
  • “Ernie Pike” (1957) – Também iniciada em pareceria com Pratt, segue a vida de um correspondente de guerra (inspirado no jornalista norte-americano Ernest Pyle).
  • “O Eternauta” (1957, 1969 e 1976) – Alienígenas invadem a Argentina e impõem uma ditadura sombria e violenta. A versão original e a continuação foram ilustradas por Francisco Solano López. A versão de 1969 ficou com Alberto Breccia, outro mestre dos quadrinhos.
  • Sherlock Time” (1958) – Uma trama que envolve mistério, investigação e… alienígenas. Essa fantasia marca a primeira parceria de Oesterheld com Alberto Breccia.
  • Mort Cinder” (1962) – Essa nova parceria com Breccia é uma fantasia sobre um homem imortal: ele morre e ressuscita, perseguido por inimigos sombrios.
  • Che – Os Últimos Dias de um Herói” (1967) – biografia proibida na Argentina de então, e lançada no Uruguai. Ilustrado por Alberto Breccia e seu filho, Enrique Breccia.

Uma curiosidade sobre este último álbum. Entrevistei Enrique Breccia em 2008, para a “Folha de S.Paulo”, e ele me contou o seguinte:

“Oesterheld escreveu dois roteiros separados, um para mim e outro para meu pai. Nenhum de nós leu o roteiro do outro até termos terminado o livro. Na realidade, nos vimos apenas uma ou duas vezes no decorrer do trabalho. Acho que ele agiu assim para diferenciar completamente as duas partes da história, sem que por isso perdessem a unidade. Além disso, meu pai e eu não trabalhamos juntos porque nossas visões gráficas eram quase opostas -e Hector sabia disso.”

ps – A editora Comix Zone está lançando “Sherlock Time” no Brasil. O meu está a caminho.

ps2 – O “El País” publicou em fevereiro que a Netflix vai adaptar “Eternauta” para a TV. Torço para dar certo.

ps3 – Este post é o sétimo de uma série chamada “Quadrinistas Eternos”. Na terça será a vez do belga Hergé, “pai” do Tintim. Já publicados:

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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