Naquele tempo distante, em que era possível sair às ruas (será que foi na Pré-História?), umasdas últimas exposições a que tive o prazer de ir foi J. Carlos – Originais. Eu já conhecia o trabalho dele, e mesmo assim saí impressionado: o carioca José Carlos de Brito e Cunha (1884-1950) foi um dos mais completos artistas gráficos que o Brasil já teve.

Aliás, J. Carlos foi um dos mais produtivos artistas brasileiros. Em seus 48 anos de carreira, publicou mais de 50 mil desenhos, entre caricaturas, charges, ilustrações e cartuns… Essa e outras informações estão no catálogo da exposição que citei, organizado por Cássio Loredano, Julia Kovensky e Paulo Roberto Pires.

A primeira coisa que chama a atenção no trabalho de J. Carlos é a beleza. O que quer que esteja sendo retratado é lindo, com poucos e precisos traços criando uma imagem bem limpa, nada poluída. As caricaturas são precisas e retratam personagens tão bem que hoje, décadas depois, é impossível não reconhecer.

A composição das ilustrações também é delicada e agradável. Nas cenas maiores que retrata – com mais de um personagem ou em que o cenário ganha relevância – há a delicadeza e a meticulosidade de um pintor.

Entre tantas qualidades de J. Carlos, há uma que me encanta mais: a de chargista. Antes, durante e depois das duas Grandes Guerras, esse grande artista criticou fortemente os principais atores políticos do seu tempo: Hitler, Mussolini, Stalin, Hirohito, Churchill, Getúlio Vargas…

A crítica era forte, mas não era apenas isso. Suas charges são, até hoje, engraçadas e reflexivas. Não bastava dar uma bordoada na cara da sociedade: ele também queria que ela pensasse.

Como a quantidade de trabalho publicado por ele é simplesmente enorme (repito, mais de 50 mil!), vou me focar em uma área específica: sua representação de países. J. Carlos dava cara humana às nações, como se elas tivessem rostos, maneiras, qualidades e defeitos específicos.

São alegorias lindas… e críticas, evidentemente. Na época da Segunda Guerra Mundial, claro, Alemanha e Japão eram os mais atacados, e obviamente o Brasil não foi poupado. Nem de longe.

Por exemplo: Zé Povo, que representa os brasileiros, é apresentado se afogando e pedindo ajuda, enquanto os principais políticos da época (Getúlio, Dutra, Adhemar) sequer percebem sua presença.

Uma parte significativa desse trabalho está reunida em outro ótimo livro: “J. Carlos contra a guerra: as grandes tragédias do século XX na visão de um caricaturista brasileiro”, também organizado por Loredano.

O que J. Carlos criticava nessas charges? Tudo. A incompetência dos políticos, a frivolidade da elite, o racionamento da gasolina e até o marketing eleitoral (como vamos na charge abaixo).

É muito fácil vir com a patacoada de “meu país, certo ou errado, acima de tudo”. É uma saída fácil e, até certo ponto, covarde, porque impede que se tome uma atitude. Nesse ponto, eu concordo com J. Carlos: se não identificarmos os defeitos na nossa sociedade, e em nós mesmos, como vamos melhorar?

ps – Este post é o 15º de uma série chamada “Quadrinistas Eternos”. Na próxima terça será a vez da japonesa Machiko Hasegawa. Já publicados:

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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