Não há nada fácil na vida de um jornalista que cobre uma guerra. Nada. Normalmente, ele está em um país que não é o seu – e não necessariamente fala a língua local. Mesmo que fale: não tem, a princípio, os contatos necessários para conseguir informações que interessem ao público. Mesmo que consiga: não estará, provavelmente, em um ambiente seguro para escrever seu texto e transmitir para a redação.

O maltês Joe Sacco faz tudo isso na forma de histórias em quadrinhos.

Sacco nasceu em Kirkop, cidade com menos de 3.000 habitantes em Malta, pequeno país no sul da Europa. Formado em jornalismo em Oregon, nos Estados Unidos, ele arranjou um jeito bastante próprio de conciliar seu talento como ilustrador com sua vocação de repórter: o jornalismo em quadrinhos.

Um dos primeiros trabalhos de Sacco: autobiográfico, mas não jornalismo

O repórter-quadrinista (ou quadrinista-repórter, você escolhe) acompanha de perto o noticiário internacional. Depois, seleciona um conflito específico. Antes de viajar, prepara-se bem:

  • estuda a História local
  • tenta saber tudo sobre os lados envolvidos (saber “tudo” é humanamente impossível, claro)
  • vai atrás de um “fixer”, uma pessoal local (que pode ser da imprensa ou não) que ajuda o jornalista estrangeiro a se ambientar, a encontrar quem precisa e, claro, indica possíveis soluções diante de inevitáveis problemas imprevistos.

Só então Sacco viaja.

Uma vez na zona de guerra, o quadrinista-repórter passa semanas ou meses entrevistando as vítimas. É um trabalho exaustivo, estressante e perturbador: o jornalista sabe que a divulgação daquela história pode até vir a ajudar quem está sofrendo, mas não vai resolver o problema.

E as histórias ouvidas são… intensas, reais, humanas. Aposto que a vontade de todo correspondente de guerra é escrever um livro sobre cada entrevistado, e não apenas uma reportagem.

É quando volta para os Estados Unidos que Sacco executa a parte mais “segura”: dar forma ao livro. Ele já tem as anotações, rascunhos etc. E manda ver.

Sacco tem um olho “mágico” para achar histórias. Trata com respeito seus personagens: afinal, são eles que importam, os seres humanos. Seu lado ilustrador também é forte, e ele capricha na reconstituição dos cenários e ambientes. Afinal, quando você mostra os efeitos de uma guerra, uma casa devastada, onde está sendo feita a entrevista, ajuda a trazer a nós, leitores, um pouco mais sobre as consequências dos ataques.

Há mais um ponto interessante nas obras de Sacco: ele próprio. Jornalista que é, sabe que sua presença também é notícia. E faz questão de relatar como chegou aos entrevistados, a maneira como os abordou e até mesmo quando ele, Sacco, erra ou é ríspido. O jornalista crítico dentro dele fica ainda mais forte quando o criticado é ele mesmo.

Conheci pessoalmente Sacco quando fui um dos entrevistadores de uma Sabatina Folha-UOL com ele em 2009. Homem educado, carinhoso, de fala mansa e tímida… Quase não dá para imaginá-lo se embrenhando em locais e situações tão desumanos.

Os dois primeiros livros de Sacco foram sobre a Palestina – o primeiro volume saiu em 1993, o segundo três anos depois. Depois, em 2001, veio uma edição compilando ambos.

Muitas outras guerras e situações desumanas aparecem em seus livros-reportagem. “Área de Segurança: Goražde” e “Uma História de Sarajevo” são sobre a Bósnia; o hercúleo “Notas Sobre Gaza” volta à Palestina, para retratar um massacre específico; e “Reportagens” apresenta várias histórias curtas ou médias de diversos pontos do planeta: o interior pobre da Índia, Iraque, Chechênia e como sua Malta natal lida com os refugiados africanos.

The Great War – July 1, 1916: The First Day of the Battle of the Somme”, inédito no Brasil, é uma exceção. Trata-se um livro de uma página inteira – gigante, que precisa ser desdobrada, e mostra um dia específico (apontado no título, que pode ser traduzido como “A Grande Guerra – 1 de julho de 1926: O primeiro dia da Batalha de Soma”) da Primeira Guerra Mundial.

Ao relatar a desumanidade do que vê, Sacco pode passar a impressão de estar criando livros sobre guerras. Não é o caso. Com seu talento e sensibilidade, ele escreve sobre a Humanidade – e o que ela tem de ruim e de bom.

ps – Este post é o 13º de uma série chamada “Quadrinistas Maravilhosos“. A ideia é publicar 15 textos em três semanas. Amanhã é a vez de Alison Bechdel.

Já publicados:

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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