Em uma visita a Portugal (sou luso-brasileiro e tenho família lá), encontrei uma loja de quadrinhos que até hoje é uma das minhas favoritas: Dr. Kartoon, em Coimbra. Após uma animada conversa, percebi que falava com uma enciclopédia ambulante disfarçada de vendedor. Aproveitei e pedi uma sugestão de banda desenhada (como chamam os quadrinhos por lá).

Confesso que esperava a indicação de um artista lusitano. Em vez disso, fui apresentado à dupla Peeters e Schuiten.

Benoît Peeters é um francês formado em filosofia e com mestrado em ciências sociais. Romancista e roteirista de quadrinhos, também publicou livros teóricos sobre a nona arte – por exemplo, “Le Monde d’Hergé” e “Hergé, fils de Tintin” (“O Mundo de Hergé” e “Hergé, Filho de Tintim”, respectivamente).

François Schuiten é um artista belga, criador de ilustrações fabulosas e laureado em 2002 com o Grand Prix de la ville d’Angoulême, espécie de “Oscar honorário pelo conjunto da obra” concedido anualmente pelo grande festival francês de quadrinhos de Angoulême.

Colegas de escola na infância, Peeters (no roteiro) e Schuiten (na arte) começaram a escrever um importante pedaço dos quadrinhos franco-belgas em 1983, quando lançaram “Les Murailles de Samaris” (“As muralhas de Samaris”). Trata-se do primeiro volume da série “Les Cités Obscures” (“As Cidades Obscuras”), formado por álbuns independentes, mas ambientados em um mesmo mundo. Até hoje, 12 livros foram publicados.

“As Cidades Obscuras” têm tudo o que nós, leitores de quadrinhos, gostamos: roteiros empolgantes, arte espetacular e, o que é melhor, um casamento perfeito entre ambos.

As histórias de “As Cidades Obscuras” acontecem em uma Terra paralela. Lá, a humanidade se dividiu em cidades-estados autônomas. Elas são civilizações bem distintas, e isso é notável, sobretudo, na arquitetura.  É neste ponto que Schuiten mais se destaca. Oriundo de uma família com três arquitetos (os pais e um irmão), ele levou para esta realidade paralela sua experiência pessoal, a Art Nouveau da arquitetura belga, René Magritte, M. C. Escher, Gustave Doré e… criou algo próprio, um estilo inconfundível.

Peeters, por sua vez, escreveu roteiros carregados na estranheza e no mistério. São histórias envolventes, sem desenlaces rápidos ou fáceis. É quase como andar por um sonho: faz sentido, mas não da maneira como você está acostumado. E tudo bem, já que as histórias são ótimas.

Quando eu era criança, meus olhos viviam em um mundo povoado por Reed “Senhor Fantástico” Richards, Peter “Homem-Aranha” Parker e Beatriz “Fúria Verde” da Costa. Não havia muito espaço fora dos super-heróis. Mesmo assim, dei uma chance para uma edição de “A Menina Inclinada” (que eu não sabia, mas era o sexto álbum das Cidades Obscuras) que meu tio português tinha e… achei estranho. Hoje, adoraria relê-la.

Procurei nas livrarias virtuais alguma edição brasileira de “As Cidades Obscuras” e não achei – vi apenas alguns volumes portugueses. Mesmo assim, fica aqui a sugestão: se tiver a oportunidade, entre em uma cidade obscura. Leve bússola e lanterna, mas não espere que elas funcionem da mesma maneira que acontece por aqui. Coisas estranhas, e maravilhosas, tendem a acontecer neste mundo criado por Schuiten e Peeters.

ps – Este post é o décimo de uma série chamada “Quadrinistas Maravilhosos“. A ideia é publicar 15 textos em três semanas. Amanhã é a vez de Brian Michael Bendis.

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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