Para mim é fácil escrever sobre o roteirista norte-americano Brian Michael Bendis – difícil é economizar nos adjetivos. Na minha opinião, é o melhor escritor do gênero de super-heróis no momento… Vamos ver se consigo explicar a razão (e, claro, você não precisa concordar!).

Bendis mostra em “Powers” até onde o gênero dos super-heróis pode chegar

Primeiramente, um contexto. Escrever roteiro das revistas mensais de super-heróis para as duas grandes editoras norte-americanas, DC e Marvel, exige três pré-requisitos trabalhosos:

  • Conhecer a continuidade das revistas. O escritor não pega os personagens do nada. Se vai escrever a HQ do Lanterna Verde, por exemplo, é preciso saber que o protagonista Hal Jordan já foi um piloto de testes de aviões, tornou-se super-herói, enlouqueceu, virou supervilão, descobriu-se que havia uma entidade alienígena no seu cérebro (o que explica os atos ruins), morreu, virou um anjo onipotente, ressuscitou… E isso é a cronologia de apenas um dos personagens. Há todos os outros.
  • Há um status quo que não pode ser quebrado… Certas questões devem ficam mantidas por anos e anos… Para que algo seja mudado, é preciso derrubar enormes barreiras dentro das editoras. Por exemplo: as premiadas repórteres Lois Lane, Íris West, Vicky Vale e Linda Park jamais perceberam que seus amados Clark Kent, Barry Allen, Bruce Wayne e Wally West são super-heróis. Ou os jornalistas que vivem no universo da DC Comics são péssimos ou, na vida real, os editores barram decisões mais delicadas.
  • É preciso ser rápido. As revistas são mensais. Prazos, amigos, prazos.

Dito isso… Brian Michael Bendis deita e rola. Ele sabe tudo da cronologia dos personagens que escreve, consegue implementar mudanças importantes e roteiriza três títulos ao mesmo tempo – quantas horas esse ser humano dorme por noite? Quinze minutos?

Jessica Jones (sim, a que você viu na Netflix) é uma criação de Bendis

Já é difícil dominar esses três itens (vou me aprofundar em dois deles logo abaixo, a parte da velocidade você vai ter de confiar na minha palavra), mas ele vai além. Seus diálogos são primorosos, verossímeis, cheios de cacofonias e inseguranças, dão um tom gostoso de coloquialidade aos personagens. E ele consegue inovar tanto no conteúdo como na forma – também vou falar disso.

Status quo e continuidade

Bendis começou em editoras pequenas, com trabalhos autorais como “Jinx” e “Torso” – ambas escritas e desenhadas por ele. Também criou “Powers”, que é publicada até hoje e, para mim, é a melhor série de super-heróis do momento, ao lado de “Astro City” – falarei de ambas neste site no futuro.

Quando ele foi para a Marvel, não chegou pegando os títulos mensais principais, é claro. Isso é normal: quando Alan Moore começou na DC, pegou o então desconhecido Monstro do Pântano; Neil Gaiman, um Sandman de quem nunca havia ouvido falar; e Grant Morrison ficou com Homem-Animal (quem?) e Patrulha do Destino (oi?).

Pois a Marvel deu a Bendis títulos de personagens menores: o Homem-Aranha de uma realidade paralela (a Ultimate) – ou seja, ele não ia comprometer a cronologia se fizesse bobagem – e, em 2001, o Demolidor, que era, na época, uma espécie de membro da terceira divisão do panteão dos heróis.

O Homem-Aranha da dimensão Ultimate, escrito por Bendis, precisou de menos de um ano e meio para contar sua identidade secreta para Mary Jane Watson; o da cronologia normal demorou algumas décadas

Bendis ficou anos escrevendo o Demolidor. De cara, quebrou o status quo: a identidade secreta dele, Matt Murdock, foi divulgada ao mundo. O escritor poderia ter recuado, como tantas vezes a editora fizera: uma vez, inventaram um irmão gêmeo, “chamado” Mike (era o Matt disfarçado); outra, colocaram o Homem-Aranha vestido de Demolidor para desviar a atenção. Na que talvez tenha sido a pior decisão a Marvel nesse sentido, veio um demônio e fez o mundo inteiro esquecer que Peter Parker era o Homem-Aranha.

Mas Bendis conseguiu: o mundo passou a saber que Matt Murdock e Demolidor eram a mesma pessoa.

Com isso, o escritor não só mudou o status quo para sempre como criou histórias excelentes. Nesse período, ele ganhou duas vezes o Eisner Awards (o Oscar de quadrinhos norte-americanos) de melhor roteirista (2002 e 2003), e “Demolidor” ainda foi eleita a melhor série contínua de 2003.

Com vocês, Matt Murdock, o Demolidor; mas pode ser Peter Parker disfarçado de Demolidor; ou ainda Matt Murdock disfarçado de Mike Murdock se disfarçando de Demolidor

Também nessa época, Bendis criou uma personagem maravilhosa para a Marvel: Jessica Jones, aquela que, anos depois, estrelaria três temporadas de uma ótima série, vivida por Krysten Ritter. Gostou do que viu na TV? Dê uma chance à HQ, tão boa quanto.

Depois do ótimo trabalho nos três títulos, a Marvel deu uma chance para ele na primeira divisão: Bendis assumiria a revista mensal dos Vingadores. Como se não bastasse os membros clássicos (Capitão América e Homem de Ferro), o rapaz queria mais dois integrantes que nunca haviam participado do grupo: Homem-Aranha (que sempre foi um personagem solitário e atuava apenas nos seus títulos mensais) e Wolverine (que sempre foi um X-Men, por que diabos iria ser um Vingador?).

Mas Bendis conseguiu: Homem-Aranha e Wolverine viraram Vingadores. Mais uma mudança irreversível no status quo da Marvel.

Inovação e homenagens

Há muita ação, diálogo e humor nas histórias de Bendis, além de situações aparentemente insuperáveis para seus protagonistas. Ponto para ele. Mas há também, em algumas edições especiais, inovações e homenagens. Vou citar só duas.

O Demolidor de Bendis, sem medo de ser Matt Murdock

Em um de seus muitos momentos memoráveis com o Demolidor, Bendis retratou um vilão que saía da cadeia. A história é apresentada em dois tempos. Na metade de cima da página, a aventura ocorre no passado, com o herói encarcerando seu inimigo. As ilustrações ficaram a cargo de um artista convidado: John Romita Sr., um dos principais artistas do super-herói vermelhão em seus primeiros anos (momento em que se passa essa parte da trama).

Na metade debaixo da página, a história se passa no presente, com o vilão buscando vingança. Quem a ilustra? John Romita Jr., filho do original e também um artista com uma passagem marcante pelo título do Demolidor.

Outra grande homenagem que achei incrível tem a ver com os Vingadores. Quando Bendis assumiu o título, a série mensal estava em sua terceira encarnação. Ele escreveu suas quatro últimas edições e relançou a série, agora chamada “New Avengers” (Novos Vingadores), a partir do número um.

Como ligação entre uma série que acabava e outra que começava, a Marvel publicou uma edição especial chamada “Avengers: Finale”.

Os Vingadores na fase escrita por Bendis

Bendis não foi humilde em “Finale”: homenageou, de uma tacada só, oito das suas sagas favoritas dos Vingadores. Como? Criou uma história emotiva, em que cada um dos heróis presentes relembrava uma aventura específica do supergrupo. Eles rememoraram, por exemplo, a origem dos Vingadores (cuja história original foi criada por Stan Lee e Jack Kirby); a ação interplanetária da Guerra Kree-Skrull; a gigantesca Saga de Korvac etc.

Por que parar por aí? Cada parte da história era retratada por um artista diferente – foram 13 no total. O resultado foi uma incrível homenagem a vários roteiristas e artistas que transformaram o título dos Vingadores no que ele era. Uma espécie de “obrigado, pessoal, se estou aqui é porque vocês foram muito bons.”

Sei que Bendis não fala português, mas é minha vez: “obrigado, Bendis, se estou te elogiando aqui é porque você merece”.

ps – Este post é o 11º de uma série chamada “Quadrinistas Maravilhosos“. A ideia é publicar 15 textos em três semanas. Amanhã é a vez de Chris Ware.

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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