Na capa amarela daquele livro, um personagem está sentado sozinho, de camisa social e chapéu, no alto de uma árvore.

Na capa vermelha daquele livro, um personagem está sentado sozinho, com capa e chapéu de um mosqueteiro da França antiga, em uma viga lá no alto de uma obra em construção.

Há algo de melancólico nestas duas cenas, silenciosas e solitárias. E também de estranho: o primeiro (no alto da árvore) tem corpo de homem e rosto de pássaro; o segundo (será que é um mosqueteiro mesmo), parece um humano com cara de cachorro.

O que será que vou encontrar lendo esses quadrinhos?

Há algo de melancólico no ar

Este é um texto sobre a obra de Jason, pseudônimo de John Arne Sæterøy, um norueguês nascido na pequena Molde (32 mil habitantes, metade de um Maracanã lotado).

Meu contato com o trabalho dele surgiu do meu gosto de olhar os prêmios internacionais de quadrinhos, que sempre dão pistas do que está sendo publicado agora lá fora. E há um brinde: algumas obras, de locais cuja produção não acompanhamos tão de perto, demoram para sair fora de seus países. E se vão para o exterior e são premiadas, uma luz se acende para mim.

Nunca havia lido uma HQ norueguesa até descobrir que Jason havia vencido a categoria de obra estrangeira do Eisner Awards, o Oscar dos quadrinhos norte-americanos, em 2007. E em 2008. E em 2009.

Poxa, esse cara deve ser bom, pensei.

Quando consegui um livro dele, “The Last Musketeer”, curti o estilo logo de cara: os personagens eram humanos com cabeças de cachorro e pareciam cômicos. A capa era simples e bonita, com um robô com cara de “o que estou fazendo aqui” segurando um cachorro antropomorfizado de capa e espada. Pensei se tratar de uma comédia. Aí eu li.

Pensei muitas coisas ao ver esta capa. E não era nada disso

É difícil enquadrar um livro de Jason em um gênero. Este álbum, especificamente, conta a história de Athos, um dos Três Mosqueteiros (sim, os de Alexandre Dumas). Mas ele está vivo ainda hoje, com mais de 400 anos, ainda em forma. Sem trabalho, pede dinheiro e comida na rua, mas mantém sua dignidade e um código de honra próprios. Aí a França passa a ser atacada por alienígenas e ele, herói que nunca deixou de ser, vai defender sua nação.

Parece uma trama rocambolesca? Não é. Assim como seu traço (simples e direto), suas cenas e diálogos são objetivos. E se você entra nesse mundo em que tudo pode acontecer e um mosqueteiro de 400 anos ainda está vivo, é difícil não se emocionar com Athos. Há algo em seus modos, sua coragem, o jeito simples como ele vê o mundo, o respeito pelos adversários… Cara, eu queria ser amigo do Athos.

Ao fim de um curto livro (48 páginas), eu já estava apaixonado pelo trabalho deste autor. Li outras obras, e minha admiração se mantém lá em cima. Em histórias curtas ou longas, Jason é completamente imprevisível.

Aqueles traços limpos e claros, mostrando rostos simpáticos de cães, podem te fazer achar que vai encarar um humor leve e divertido. Não se engane. Pode haver humor (e normalmente tem), mas também lirismo, ficção científica, introspecção, aventura…

Entre uma página e outra, do nada pode surgir uma viagem no tempo para matar Hitler, um ataque de zumbis, uma invasão marciana ou uma situação absolutamente prosaica. Você simplesmente não tem como prever.

“Sshhhh!”, por exemplo, traz dez histórias curtas. A premissa pode ser prosaica como um pai solteiro criando o filho, ou surreal como um homem que passa a ser perseguido por um esqueleto – mas não pelo motivo que você está pensando, não há terror ou crime envolvido.

Uma máquina do tempo, um assassino de Hitler e uma história imprevisível

A editora Mino já publicou no Brasil “Eu Matei Adolf Hitler” (Eisner Awards em 2008) e “Sshhhh!”. “A Gangue Da Margem Esquerda” (Eisner Awards em 2007) está saindo agora (publicarei uma crítica sobre ele em breve).

Dá para entender o que o pessoal do prêmio norte-americano viu nele.

ps1: Há uma boa entrevista com Jason no Vitralizado.

ps2: Este post é o sexto de uma série chamada “Quadrinistas Maravilhosos”. A ideia é publicar 15 textos em três semanas. Amanhã é a vez da mangaká Riyoko Ikeda.

Já publicados:

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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