Há cerca de dez anos, um vendedor me viu em uma livraria dos Estados Unidos e, muito solícito, veio me atender. Pedi um livro de Garry Trudeau. O senhor abriu um sorriso e respondeu:

– Fico muito feliz de ver alguém procurando algo de um artista tão inteligente. Infelizmente, não tenho nenhum aqui na loja, mas se o sr. puder voltar amanhã, faço questão de te presentear com algum da minha coleção.

Não aceitei o presente – quem sou eu para estragar a coleção de alguém?, mas adorei a simpatia daquele homem. E, como havia lido pouca coisa de Trudeau até então, aquela cena apenas aumentou a minha curiosidade.

Abro um parêntese aqui: isto já aconteceu comigo aqui no Brasil, na livraria Devir. Ainda adolescente, queria comprar exemplares de “Sandman”. Um homem muito simpático, chamado Mauro (nunca soube o sobrenome), me vendeu os números 27 e 29, me deu uma aula sobre Neil Gaiman e falou que, se tivesse o 28 lá, me daria por eu estar lendo algo tão bom. Naquele mesmo dia, achei o 28 em um sebo e fiz questão de voltar para a Devir e mostrar para o Mauro.

Livro fabuloso que faz a retrospectiva das primeiras quatro DÉCADAS de Doonesbury

Garry Trudeau começou a publicar diariamente a tira “Doonesbury” nos jornais norte-americanos em 1970. Manteve o ritmo até 2014… De lá para cá, apenas a de domingo é inédita, e as demais, republicações.

Nenhum livro de “Doonesbury” foi publicado no Brasil. Na minha infância, a tira saia em algum jornal grande do Brasil – acho que no Estadão. Lembro, aliás, que era a única da qual eu não gostava.

Vou fazer um breve resumo da tira e depois elencar quatro casos que mostram o tamanho de “Doonesbury” para a sociedade norte-americana.

Tira de “Doonesbury” nos anos 70 (essa é de 1975, para ser mais preciso)

A tira começou como uma série de humor focada em Mike Doonesbury (daí o nome). As histórias não ficavam apenas nele, e uma leva de grandes personagens foram surgindo ao redor.

O que enriquecia a obra de Trudeau é o fato de ela representar a sociedade americana ao seu redor: há temas políticos e comportamentais. Não é uma HQ isolada do mundo, pelo contrário. Vivia-se o início dos anos 70 e a série mostrava a Guerra do Vietnã, o feminismo, inquietações políticas e culturais.

Trudeau manteve-se conectado ao mundo que o cerca. Os quatro itens abaixo, que trago para mostrar o tamanho de “Doonesbury”, mostram um pouco disso.

1 – Anos 70: as mulheres e a universidade

Trudeau criou, em 1972, uma personagem chamada Joanie Caucus. Casada e mãe de uma filha, vivia um casamento infeliz. Divorciou-se, algo raro na época. Queria ser uma mulher independente. Em 1975, já com mais de 30 anos, tentou estudar Direito. Ela esperava, e esperava, por uma resposta positiva de alguma faculdade… que não vinha.

Joanie Cacaus esperando a resposta de alguma universidade (qualquer uma!) em 1974

Aí entra o mundo real: Trudeau recebeu uma carta de Universidade de Boston dizendo que Joanie havia sido admitida lá. O alcance da tira era tamanho que centenas de alunos da instituição haviam feito uma petição para que direção da universidade aceitasse uma personagem de quadrinhos como aluna.

O artista, claro, aceitou: preencheu formulários e recebeu a carteirinha de estudante dela, bem como, por três anos, toda a correspondência destinada a um aluno normal.

Essa mudança, originada no mundo real, se refletiu nos quadrinhos, e as histórias passaram a mostrar Joanie na universidade até sua formatura – que ocorreu no mundo real, com a cadeira destinada a ela na plateia vazia em sua homenagem.

Em tempo: a de Boston não foi a única. Outras seis universidades norte-americanas aceitaram Joanie como aluna, mas Trudeau optou pela primeira.

E mais: foi criado um fundo que destinava US$ 100 mil a mulheres com mais de 30 anos que queriam estudar Direito. O nome do programa? Joanie Cacaus Exxon Fellowship Program.

2 – Anos 80: uma força no combate contra a fome na África

Outro personagem interessante de “Doonesbury” é Jimmy Thudpucker, criado em 1975. É um músico de um único e estrondoso sucesso, que não consegue emplacar novos hits. Mais do que tudo, é um homem bondoso e carismático.

E eis que chegam os anos 80 e dezenas de artistas se juntam para gravar “We Are the World” (“nós somos o mundo”), álbum cuja renda seria revertida para ajudar a combater a fome na África.

E onde Trudeau entra aí? Para ajudar na divulgação. Ele foi convidado pelos organizadores a participar das sessões de gravação do álbum. Em troca, ele criaria tirinhas em que Thudpucker aparecesse, ajudando assim a espalhar a missão do projeto “USA for Africa” (“EUA pela África”).

Trocando em miúdos: um álbum que tinha 45 músicos, incluindo Michael Jackson, Cindy Lauper, Lionel Richie, Harry Belafonte, Bob Geldof, Ray Charles, Kenny Rogers e Bruce Springsteen, foi buscar a ajuda de “Doonesbury” para ter um alcance ainda maior.

E Thudpucker se tornou o 46º músico do compacto “We Are the World”.

Tira de 1985 mostra a histórica participação de Jimmy Thudpucker em “We Are the World”:
Quadro 1 – “OK, Jimmy, hora do seu solo!”
Quadro 2 – “O!”
Quadro 3 – “Lindo. Obrigado, Jimmy.”
Quadro 4: “Será que eu poderia falar uma sílaba a mais?”
“Jim, ainda tenho mais 46… Próximo!”

3 – A Lei Doonesbury

Nos anos 80, trabalhadores (taxistas, garçons, vendedores…) de Palm Beach, na Flórida, eram obrigados a andar com certos documentos específicos, enquanto a classe mais abastada não precisava.

Trudeau retratou a bizarrice. Pouco tempo depois, a Lei Doonesbury foi aprovada e essa bobagem discriminatória deixou de existir.

4 – Os traumas da Guerra no Iraque

Um dos protagonistas de “Doonesbury” é B.D., criado no mesmo ano em que a tira nasceu (1970). Retratado sempre como patriota, meio machão, levemente teimoso, ele protagonizou um dos melhores momentos da tira neste século.

B.D. foi voluntário na Guerra do Iraque. Quando voltou, havia perdido um membro e estava psicologicamente perturbado com o que viveu lá. O trauma impactou sua rotina, seu casamento, a relação com o filho… E ele foi procurar ajuda de um grupo de veteranos.

Lembra que eu mencionei o tamanho de “Doonesbury”? O Departamento de Defesa dos EUA entrou em contato com Trudeau e ofereceu ajuda, caso sentisse que precisasse. O artista frequentou, então, algumas sessões de um centro médico do Exército voltado a atender veteranos amputados.

A série com a recuperação física e emocional de B.D. ficou tão boa que Trudeau recebeu uma honraria do Exército Norte-Americano, a Public Service Commendation Medal.

Funcionário de uma clínica, um veterano recebe B.D.:
Quadro 1: “B.D., antes de tudo, quero dizer que é preciso coragem para vir aqui. Parabéns!”
Quadros 2 e 3: “Não foi ideia minha. Tem alguma coisa incomodando meu psiquiatra, tem alguma coisa incomodando os amigos que fiz na guerra, minha mulher falou que ia se separar se eu não viesse, meu filho está com medo de mim, meus amigos e família estão preocupados commigo!
Quadro 4: “Então, você não está aqui por sua causa.”
“Não, eu estou bem.”

Por que a série não despertou interesse no Brasil? Não sei. Talvez por ser tão focada na política norte-americana, numa época pré-internet. As piadas e críticas poderiam ficar sem contexto por aqui. Hoje, por exemplo, um dos maiores alvos é ninguém menos do que Donald Trump. Nós, brasileiros, entenderíamos, não?

ps – selecionei três prêmios da lista de Doonesbury:

  • 1975 – Prêmio Pulitzer de cartum/quadrinhos para Trudeau (foi finalista mais três vezes)
  • 1977 – “A Doonesbury Special” (“um especial Doonesbury”, em tradução livre), um curta animado de 30 minutos que foi indicado ao Oscar e venceu o prêmio especial do júri de Cannes de melhor curta
  • 1995 – Prêmio Reuben, concedido anualmente pela National Cartoonists Society (sociedade de quadrinistas/cartunistas dos Estados Unidos) desde 1954

ps2: Este post é o oitavo de uma série chamada “Quadrinistas Maravilhosos“. A ideia é publicar 15 textos em três semanas. Amanhã é a vez de Salvador Sanz.

Já publicados:

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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