Iniciamos ontem, aqui no site Hábito de Quadrinhos, a publicação de um especial em dez posts contando a história da Mulher-Maravilha – o Dossiê Mulher-Maravilha.

Ontem, falamos da gênese dos super-heróis e da falta de personagens femininas naquele contexto. Hoje, abordaremos, entre outros temas:

  • A ligação com a mitologia grega;
  • O início do contato com outros personagens da DC Comics, como membro da Sociedade da Justiça;
  • A curiosa história de Diana Prince (que não é a Mulher-Maravilha!);
  • Steve Trevor, o eterno amor (até o século 21 …).

Na próxima segunda, falaremos das mudanças dos anos 40 e 50.

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Como o estrondo de trovão do céu, vem a Mulher-Maravilha para salvar o mundo dos ódios e guerras dos homens em um mundo feito pelos homens! E que mulher! Uma mulher com a beleza eterna de Afrodite e a sabedoria de Atena – ainda  que suas formas adoráveis escondam a agilidade de Mercúrio e os tendões de aço de um Hércules! Quem é a Mulher-Maravilha?

(parágrafo de introdução da segunda história da Mulher-Maravilha, publicada sem título em “Sensation Comics” nº 1, de janeiro de 1942, a primeira revista a trazer a Mulher-Maravilha na capa)

A Ilha Paraíso

Muitos séculos atrás, na Grécia Antiga, havia a nação mais avançada do mundo: a Amazônia, um povo formado apenas por mulheres.

O poderoso semideus Hércules, filho de Zeus, quis dominar a Amazônia. Hipólita, a líder amazona, desafiou Hércules para um duelo. Utilizando o Cinturão Mágico dado por Afrodite (deusa da paixão afetuosa e do amor), que a deixava invencível, a rainha venceu a luta.

O semideus, entretanto, trapaceou e roubou o Cinturão Mágico – uma releitura do nono dos Doze Trabalhos de Hércules. Hipólita foi derrotada e as amazonas, escravizadas.

Afrodite intervém e ajuda Hipólita a reaver o cinturão. As amazonas embarcam em um navio e fogem. Elas encontram a Ilha Paraíso, onde não havia ódio, guerra ou doença, e constituíram uma raça de “wonder women” (mulheres maravilhosas).

A deusa, entretanto, decreta que as amazonas devem usar para sempre os braceletes com os quais escaparam, para jamais se esqueceram do tempo em que eram escravas. E assim elas vivem, isoladas do mundo dos homens. Deveria ser assim para sempre, mas aí não haveria a necessidade de uma Mulher-Maravilha.

Este contexto histórico das amazonas está na primeira história da Mulher-Maravilha, publicada em “All-American Comics” nº 8. O rico contexto criado por William Moulton Marston seria largamente ampliado nos próximos anos e até hoje, mesmo diante das reformulações às quais a personagem foi submetida por sua editora para atrair novos leitores e/ou “atualizar conceitos”.

As histórias da Mulher-Maravilha nos quadrinhos, bem como o seriado de tv que fez sucesso nos anos 70, ainda bebem desta fonte: Grécia Antiga, a traição perpetrada pelos homens, a luta contra a subjugação e a Ilha Paraíso. Novos elementos, é claro, ainda seriam criados: o avião invisível, o laço mágico que obriga uma pessoa a dizer a verdade, o detalhado uniforme etc.

Marston escreveu as histórias de 1941 a 1947, quando morreu. Até lá, conseguiu criar uma rica mitologia para sua Mulher-Maravilha, da mesma maneira que colegas quadrinistas fizeram ao redor dos personagens contemporâneos Superman (criado em 1938) e Batman (de 1939). Os três (Superman, Batman e Mulher-Maravilha) são considerados os pilares sobre os quais se firmou a editora DC Comics e o gênero dos super-heróis.

Nos anos 60, com o Homem-Aranha, o Hulk, o Quarteto Fantástico e os X-Men, entre outros, os super-heróis ganhariam um novo fôlego – e isso viria a acontecer outras vezes, como é natural, pois este não foi um gênero que simplesmente parou no tempo. Mas, no início, quando houve a “grande explosão” que ficou conhecida como a “Era de Ouro” e os arquétipos dos super-heróis foram estabelecidos, eram eles que estavam lá: Superman, Batman e a Mulher-Maravilha.

A mitologia que envolve a Mulher-Maravilha foi inspirada na grega, mas não só. Havia o inevitável clima da Segunda Guerra Mundial pairando nos Estados Unidos daquele tempo, o que se refletiu em suas histórias. E a terceira grande influência foram os próprios gibis de super-heróis.

Os conceitos que foram surgindo naquela explosão cultural iniciada em 1938 foram se pulverizando nas revistas das maiores editoras, inclusive a National e a All-American, que se fundiriam definitivamente em 1944.

A Mulher-Maravilha teve participação ativa em um dos movimentos que estavam sendo criados ali: os supergrupos, ou equipes formadas por super-heróis. O conceito básico era bem simples: oferecer aos leitores, por poucos centavos, a oportunidade de ler muitos heróis de uma vez só. Mais do que isso: eles iriam interagir entre si. Ela não foi membro fundador do primeiro supergrupo, mas teve papel importante em sua história.

Além dos fatores mitologia grega, Segunda Guerra e super-heróis, o quarto – e óbvio – elemento foi a valorização da mulher. Não bastava publicar histórias protagonizadas por uma mulher que servisse de exemplo para as leitoras. Era preciso provar, de alguma maneira, que era possível ser uma mulher forte e independente. Assim, desde o nº 1 de “Wonder Woman”, a revista era complementada por histórias curtas de uma série chamada “Wonder Women of History” (Mulheres-Maravilha da História).

Nas curtas biografias em quadrinhos, eram apresentadas as vidas de mulheres que foram exemplares. No primeiro número da série, a biografada foi a enfermeira britânica Florence Nightingale (1820-1910); no último número de “Wonder Women of History” (“Wonder Woman” nº 66), publicado em maio de 1954, a protagonista foi a advogada norte-americana Gail Laughlin (1868-1952).

A Sociedade da Justiça da América

O primeiro de todos os supergrupos foi a Justice Society of America (no Brasil, Sociedade da Justiça da América, ou só Sociedade da Justiça). A equipe foi criada pelo roteirista Gardner Fox e pelo editor Sheldon Mayer, e estreou no terceiro número da “All Star Comics”, lançado no inverno de 1940 (verão no Brasil).

Oito super-heróis eram membros da Sociedade: Flash, Lanterna Verde, Gavião Negro, Átomo, Senhor Destino, Espectro, Homem-Hora e Sandman. Não havia mulheres no grupo – a Mulher-Maravilha ainda não havia sido criada.

A ideia de Fox e Mayer era que a revista pudesse rivalizar, em vendas, com os medalhões da editora, Batman e Superman. Os dois, aliás, foram tidos como “membros honorários”, e fizeram apenas duas aparições. Quando o Flash e o Lanterna Verde ganharam revistas próprias, também foram alçados ao status de “membros honorários” e deixaram o grupo.

As histórias da Sociedade tinham um modelo bem diferente do que é usado hoje nos títulos dos supergrupos. Os heróis não agiam juntos. Eles se encontravam em reuniões e cada um partia para sua missão, isoladamente. Apenas em 1947 eles passaram a atuar em conjunto.

Oito edições depois de sua estreia, a Sociedade da Justiça finalmente contracenou com a Mulher-Maravilha em uma história: foi em “All Star Comics” nº 11 (junho-julho de 1942). Ela ainda não era membro do grupo, atuou como convidada. Foi a primeira vez que outro roteirista que não Charles Moulton escrevia uma história da Mulher-Maravilha: Gardner Fox, criador e escritor da Sociedade da Justiça. O capítulo em que ela efetivamente entra em ação, entretanto, é ilustrado por seu desenhista regular, Harry G. Peter.

Um mês antes dessa edição, em maio, foi lançado um concurso em “Sensation Comics” nº 5. Seis personagens concorriam à vaga de novo integrante da Sociedade da Justiça: Black Pirate (Pirata Negro, no Brasil), Gay Ghost, Little Boy Blue (Menino Azul), Mister Terrific (Senhor Terrível), Wildcat (Pantera) e uma única heroína: a Mulher-Maravilha.

Concursos eram comuns na “All Star Comics”. A participação dos leitores era estimulada. Em uma edição, havia uma pergunta. Na seguinte, era publicada a resposta. O curioso, neste caso, é que em “All Star Comics” nº 11 houve uma pergunta reforçando a pesquisa. Era dito que a Mulher-Maravilha “ainda segurava uma dianteira clara”, mas:

alguns membros [da SJA] sentiam que uma mulher não deveria ser permitida a se tornar integrante do grupo, embora eles estivessem felizes de receber a ajuda dela no Batalhão de Justiça. O que vocês, meninos e meninas, acham?”

Nesta mesma edição, os leitores também foram questionados se deveria haver uma Sociedade da Justiça da América Júnior a qual eles poderiam se juntar. O prêmio a ser distribuído eram mil exemplares do próximo número da revista.

O resultado saiu em “All Star Comics” nº 12 (agosto-setembro de 1942). Pela primeira vez, a Sociedade da Justiça teria uma super-heroína como membro: a Mulher-Maravilha, que aparecia na capa da revista com os braços levantados em forma de “V”, cercada por seus oito novos colegas de grupo (Gavião Negro, Doutor Meia-Noite, Átomo, Espectro, Senhor Destino, Sandman, Johnny Trovoada e Starman). A equipe já havia perdido dois dos membros fundadores, substituídos por outros dois heróis. A incessante mudança no elenco de um supergrupo é constante até hoje (aliás, mais do que nunca).

Secretária

O ingresso da Mulher-Maravilha para a Sociedade da Justiça foi uma evolução para o gênero dos super-heróis? Certamente, mas aquele era outro tempo, em que o machismo era ainda maior do que hoje.

Em “All Star Comics” nº 15 (fevereiro-março de 1942), a Sociedade da Justiça enfrentaria o vilão Onda Mental (Brain Wave), em sua primeira aparição. A chamada na capa dizia: “A história do homem que criava imagens! Como contado em cartas pessoais de cada membro da Sociedade da Justiça para sua secretária, Mulher-Maravilha!”

A primeira integrante mulher do primeiro grupo do gênero de super-heróis era, na verdade, sua secretária. Nesta mesma edição, com todos os demais membros ocupados em missões importantes e suas respectivas namoradas preocupadas, a Mulher-Maravilha se disfarçou de cada um deles para acalmar as pobres e desamparadas moças, que não sabiam da vida dupla de seus amados.

A promoção da DC Comics sobre a “Sociedade da Justiça Júnior” foi um sucesso. Os leitores que pagaram US$ 0,15 receberam um distintivo e um certificado assinado pela secretária do grupo. No final do pequeno “diploma” estava:

“Esta afiliação é aceita pelo membro da escritura acima com o juramento de manter segredo do cógido da s. j. a. j. e o cumprimento dos anúncios da Sociedade De Justiça Júnior de América em toda edição de “All-Star Comics. Em Testemunha do qual eu tenho neste dia estabelecido com meu selo e assinatura que segue:
Diana Prince (em forma de letra manuscrita, como se fosse uma assinatura)
(Mulher-Maravilha) … Secretária”.

Hoje, as editoras tratam com muito mais cuidado seus personagens. O papel da Mulher-Maravilha na DC ampliou-se, e os roteiristas aproveitarm muito do que foi deixado nas quase sete décadas de existência da heroína. O fato de ela ter sido secretária da Sociedade da Justiça não foi ignorado.

A Sociedade da Justiça ainda existe no século 21. A maior parte dos membros fundadores já morreu ou se aposentou, mas o legado continua. O grupo tem até um museu em sua sede, tocado pela senhora Abigail Mathilda Hunkel – que, no passado, foi aliada do grupo como a Tornado Vermelho (aliás, a primeira super-heroína da história, como vimos no post de ontem). Na história “Fantasma em Casa”, publicada em abril de 2006, Mathilda, falando sozinha, diz:

Eu adoro este salão. Cheio de todas as aventuras que eu perdi… Ainda bem que Hipólita anotou bastante coisa. Imagine só, a Mulher-Maravilha como secretária! Sorte que o senso de humor dela era dos melhores, antes que ela conhecesse Gloria Steinem e se envolvesse naquele movimento ou sei lá o que era aquilo.

A fala de Mathilda, embora curta, diz muito sobre a dificuldade de manter uma linha histórica coerente para uma personagem com tantas décadas de aventuras publicadas. Em primeiro lugar, confirma seu status de secretária. Em segundo, dá quase uma explicação de por que ela teria aceitado essa função, que talvez hoje ela não aceitasse: foi antes de conhecer Gloria Steinem.

Gloria Marie Steinem, nascida em 1934, é uma jornalista que se tornou um dos ícones do movimento feminista norte-americano. Ela foi fundadora da revista “Ms.” e teve grande importância na história da Mulher-Maravilha no início dos anos 70, quando a DC começou a inovar nos rumos de sua personagem, que havia abdicado de seus poderes e trocado de uniforme: usava agora uma roupa branca e simples.

Assim, quando a primeira edição da “Ms.” foi às bancas, em julho de 1972, havia chamadas para um artigo de Gloria Steinem e um perfil de Simone de Beauvoir, mas quem ilustrava a capa da revista de alto a baixo, em seu uniforme original e “aposentado”, era a Mulher-Maravilha. Pouco tempo depois, a DC desistiu daquela fase inovadora e a Mulher-Maravilha retomou sua clássica vestimenta.

Ao citar Gloria Steinem na história, é como se a DC reconhecesse que as ideias da ativista de fato influenciaram na representação da personagem. Ao mesmo tempo, Mathilda reclama que a Mulher-Maravilha perdeu seu bom humor. Pode ser apenas uma brincadeira, ou pode ser o reconhecimento de que a inocência das primeiras histórias da Mulher-Maravilha deixou de existir com as mudanças inevitáveis que a sociedade norte-americana sofreu com o passar do tempo.

Além disso, há um terceiro detalhe na frase: Mathilda se refere à Mulher-Maravilha como Hipólita. Pode parecer um pouco complicado, a princípio, para quem não acompanha de perto as histórias em quadrinhos norte-americanas, mas o fato é que as editoras às vezes usam um artifício chamado “retcon”, que significa continuidade retroativa. Acontece quando a editora muda o passado de um ou mais personagens, e passa a valer o “novo” passado.

Assim, por exemplo, se a editora Marvel definir que o Homem-Aranha que você está lendo não é o herói que você pensa, mas um clone dele, e que todas as histórias dos últimos 19 anos de publicação foram estreladas pelo clone, e não pelo herói, houve um retcon. (Este exemplo é real, mas foi tão mal aceito que a Marvel voltou atrás e estabeleceu mais uma vez que o Homem-Aranha era o Homem-Aranha e o clone era o clone.)

No caso da DC, ela criou um retcon dizendo que quem lutou a Segunda Guerra Mundial ao lado da Sociedade da Justiça foi a Mulher-Maravilha, mas não a princesa Diana: quem usava o uniforme e o título de Mulher-Maravilha era a rainha Hipólita, mãe de Diana. Esta história, repleta de retcons e mudanças no conceito da personagem, será explorada mais à frente nesta série de posts, com o capítulo que trata das quatro mulheres-maravilha – entre as outras duas, aliás, há a irmã gêmea de Diana, criada em outro retcon.

De qualquer maneira, embora, originalmente, foi Diana a secretária e membro da Sociedade da Justiça, hoje, para a editora DC Comics, bem como para seus leitores, o papel coube, na verdade, à outra Mulher-Maravilha, a rainha Hipólita.

A Segunda Guerra Mundial

Dentro e fora das páginas dos quadrinhos, a influência da Segunda Guerra Mundial (1939-45) era grande demais para não ser sentida. O gênero dos super-heróis havia surgido em 1938, se tomarmos como ponto de partida o lançamento do Superman. Enquanto dentro dos gibis o número de super-heróis e personagens de humor aumentava cada vez mais, fora o número de conflitos e mortes também se elevava.

O roteirista e escritor Gerard Jones afirmou, em seu livro “Homens do Amanhã”, que o período foi ótimo para a venda de hqs:

“A guerra foi boa para os quadrinhos. Aquelas revistinhas gordas e coloridas, de leitura fácil, eram perfeitas para o pracinha matar o tempo, na base ou no navio. Até o final de 1942, de todo o material impresso enviado aos acampamentos militares, mais de trinta por cento foram gibis. As vendas, já bastante altas, subiram a novos patamares. A Superman vendia mais de um milhão de exemplares por edição, a Capitão Marvel às vezes batia na casa dos dois milhões. E a Comics and Stories, de Walt Disney, vendia mais que as duas primeiras juntas.”

Em dezembro de 1941, mesmo mês em que o Japão atacou Pearl Harbor (dia 7) e os Estados Unidos declararam guerra ao Japão (dia 8), chega às bancas a edição de estreia da Mulher-Maravilha. Na história, ela e seu povo, as amazonas, viviam à parte da humanidade, em uma ilha tão isolada quanto avançada na América Central. E o que mudou tudo, o acontecimento que fez com que as amazonas revissem seu exílio e decidissem enviar uma representante para o mundo dos homens, foi a queda de um avião do  Exército norte-americano na Ilha Paraíso, onde viviam. Elas não foram até a guerra: a Segunda Guerra Mundial foi até as amazonas na forma de um piloto ferido, o primeiro homem a pisar no seu refúgio.

As habitantes da Ilha Paraíso são um povo quase mágico, tais são seus inúmeros recursos. Um deles é a Esfera Mágica, um presente de Atena (deusa da sabedoria e do comportamento heroico). Com este mecanismo, que se parece com uma televisão de tela esférica, as amazonas podem ver o que aconteceu – e acontece – no mundo dos homens e, em alguns casos, prever o futuro. E assim fazem, para descobrir como e por que um homem foi parar na ilha.

Elas descobrem que ele é um militar de uma nação chamada Estados Unidos, e que eles combatem uma terrível ameaça à democracia (a palavra “nazismo” não aparece). Trevor está ferido, mas ele é peça fundamental nesta chamada Segunda Guerra Mundial.

A rainha amazona consulta Afrodite e Atena: afinal, o que fazer? E as deusas afirmam que o mundo inteiro está sob ameaça do ódio e da opressão (o nazismo), e que ela deve escolher a mais forte e sábia entre as amazonas para a América, “última fortaleza da democracia”, e ajudála na guerra.

Assim, é realizado um torneio de força e habilidade com vinte e uma provas. Após vinte desafios, o desempate ocorre na prova mais importante: “Bullets and Bracelets” (“Balas e Braceletes”). Cada competidora, que já usa normalmente os braceletes, deve dar cinco tiros na rival. As amazonas são rápidas e fortes o suficiente para desviarem um tiro disparado a uma distância de alguns metros com seus braceletes. A vencedora é Diana, princesa e filha de Hipólita.

A rainha havia proibido a filha de participar do torneio. Não queria correr o risco de “perder” Diana para o mundo dos homens. Entretanto, a princesa estava apaixonada por Steve Trevor, e decidiu que faria tudo o que fosse possível para estar ao seu lado – inclusive desobedecer à sua mãe e soberana.

Contrariada, mas honesta, Hipólita dá a Diana a tarefa de ajudar a democracia (os Estados Unidos) na guerra, bem como um uniforme que deverá usar em seu novo lar. Trata-se de um modelo inspirado na bandeira norte-americana: botas vermelhas, saias azuis com estrelas brancas, uma espécie de colete vermelho com uma águia dourada, uma tiara dourada com uma estrela vermelha e os braceletes, para nunca esquecer a escravidão.

Uma curiosidade: em uma entrevista dada a Olive Richard (pseudônimo de sua amante, Olive Byrne), Marston revelou que os braceletes da Mulher-Maravilha foram inspirados nos braceletes da “sua mulher-maravilha”: Olive Byrne.

Não há uma explicação, na história, para a águia no peito da heroína. Ela tampouco é rebatizada com o nome pelo qual ficaria conhecida (Mulher-Maravilha). Sua mãe apenas a lembra que seu nome, Diana, é uma homenagem à madrinha, deusa da lua, e diz que ela será “uma mulher maravilha” nos Estados Unidos.

Todas estas informações, e mais algumas, estavam nas nove páginas da história publicada em “All-American Comics” nº 8. Muitos novos dados seriam acrescentados nas histórias seguintes: o avião invisível, o codinome de super-heroína, o nome civil nos Estados Unidos, personagens coadjuvantes e sua galeria de supervilões (supervilãs, na maioria).

Mitologia grega

Junto aos elementos oriundos do universo dos super-heróis e da Segunda Guerra Mundial, havia uma terceira fonte de enormes referências para a construção da personagem Mulher-Maravilha: a mitologia grega.

Ares, o deus da guerra, era um dos principais antagonistas da Mulher-Maravilha, desde sempre. Ele perseguia as mulheres porque temia que elas espalhassem sentimentos antibélicos e levassem a democracia ao mundo, deixando o poderoso Ares “desonrado” e “desempregado” (na imagem acima, ele aparece em sua base, que fica no planeta Marte).

Outro componente importante é Hércules, que foi eternizado pela mitologia grega como um herói. Como visto no início deste post, ele entrou para a história da Mulher-Maravilha como um vilão traiçoeiro que levou desgraça à sua mãe.

E, além dos deuses homens (e maus), havia as deusas. Acima de tudo, Afrodite, que foi quem ajudou as amazonas a recuperar o Cinturão Mágico, a fugir de Hércules e a encontrar a Ilha Paraíso. Ou seja, é fundamental para a origem da Mulher-Maravilha, bem como para as condições especiais nas quais seu povo se desenvolveu.

Mais do que a mitologia, a cultura grega como um todo tem a ver com a Mulher-Maraviha. Todas as amazonas são, antes de tudo, gregas, pois pertencem à uma raça de imortais nascida na Grécia Antiga, e que depois migrou para a América Central. O idioma que elas falam, portanto, é grego arcaico.

Esta origem grega se mantém até hoje nas histórias da Mulher-Maravilha, com poucas alterações. Uma delas é quanto ao status da Ilha Paraíso, hoje também conhecida como Themyscira. Tornou-se uma nação, com direito à embaixada nas nações amigas – a embaixadora nos Estados Unidos é, claro, a Mulher-Maravilha. E o idioma que elas falam agora é o themysciriano, uma variação do grego clássico.

Outra alteração está em que não foi apenas Afrodite quem abençoou e protegeu as amazonas em seu momento mais difícil. Além da deusa da beleza e do amor, também protegem o povo themysciriano Ártemis (deusa da caça), Atena (inteligência), Deméter (fertilidade), Héstia (família) e até um deus, Hermes.

A terceira mudança é uma presença maior do panteão grego nas histórias, especialmente a partir dos anos 80. O panteão grego passou de personagens coadjuvantes a um elenco quase fixo das histórias. Zeus, Hera, Hermes, Hércules e os demais são retratados como seres incrivelmente poderosos, mas com defeitos humanos: ciúmes, ira, inflexibilidade e um profundo orgulho. São manipuladores, “políticos” e gananciosos. Não parecem deuses no sentido de estarem próximos da perfeição ou de um estágio superior, mas apenas por uma incomparável força e longevidade.

Avião invisível e Diana Prince

O cenário está feito – pelo menos em um primeiro momento. Na verdade, ele continuaria sendo construído aos poucos, um elemento por vez, história após história. Embora os elementos de super-heróis e mitologia grega estivessem lá, o que mais se destacou, naquele início dos anos 40, foi o contexto da guerra.

Na primeira história, publicada em “All Star Comics” nº 8, Steve Trevor é abatido de seu avião enquanto enfrentava alemães – não diz abertamente “nazistas”, mas eles aparecem falando alemão (“vas ist”, “mein herr”). Na história seguinte, publicada em “Sensation Comics” nº 1, a princesa Diana e seu amado Trevor enfrentam espiões.

Surgem outros elementos importantes em “Sensation Comics” nº 1, como o avião invisível da princesa Diana, que é descrito como silencioso e transparente, mas que precisa ser guardado em um hangar abandonado para não ser encontrado. Isto pode ter duas explicações: ele é invisível, mas não imaterial. Se ele ficasse pousado em algum lugar movimentado, alguém iria inevitavelmente trombar com ele. A outra é que a “invisibilidade” dele ainda não fora totalmente desenvolvida por Moulton e Peter, que estavam começando a aplicar estes elementos fantásticos à personagem.

É nesta mesma história que ela apresenta suas primeiras habilidades sobre-humanas: derrota três ladrões no combate corpo a corpo e corre mais velozmente que um carro a 60 milhas por hora (aproximadamente 97 quilômetros por hora). Hoje, com os poderes banalizados nas hqs de super-heróis, isso não é quase nada. Para janeiro de 1942, foi realmente extraordinário.

É nesta primeira história que a princesa Diana passa a morar em Washington, para ficar mais próxima de Steve Trevor. Após impedir um crime, desviando balas atiradas contra ela com seus braceletes, ela é contratada por um empresário chamado Al Kale e consegue seu primeiro emprego (não precisava trabalhar na Ilha Paraíso, era princesa): ela se torna uma artista.

Assim, a princesa Diana passa a exibir o “Balas e Braceletes” nos palcos de Washington. Ela ganha dinheiro do empresário e é batizada pela imprensa de Wonder Woman (Mulher-Maravilha). A expressão havia aparecido na história anterior para designar as amazonas de uma maneira geral, não específica.

O criminoso Al Kale tenta roubar o dinheiro da princesa Diana, agora já conhecida como Mulher-Maravilha, mas ela descobre a tempo e o prende. Sua vida, entretanto, está sem rumo. Ela quer se aproximar de Steve Trevor, mas não imagina como.

Eis que ela encontra uma mulher fisicamente muito parecida com ela chorando compulsivamente. Descobre que se trata de uma enfermeira que trabalha no hospital em que Trevor está internado. O noivo da enfermeira fora transferido para a América do Sul (para o Brasil, como seria revelado alguns números mais tarde) e ela quer ir encontrá-lo, mas não tem dinheiro.

A princesa Diana faz uma proposta que seria inviável nos tempos politicamente corretos de hoje: ela compra a identidade e os documentos da enfermeira que, com este dinheiro, pode mudar de país para encontrar seu amado.

Assim, a Mulher-Maravilha assume uma nova identidade: o nome da enfermeira que ela acabara de conhecer e que, por coincidência, era sua xará. Mais do que xará: a enfermeira se chamava Diana Prince, que em português significa… princesa Diana.

A Era de Ouro dos quadrinhos de super-heróis foi um momento de muita criatividade… e inocência.

Algemas

 “Sensation Comics” nº 2 foi às bancas em fevereiro de 1942, levando a terceira história da Mulher-Maravilha e uma série de “estreias”:

  • Aparece o primeiro supervilão do longo rol que a heroína amealharia com o passar dos anos: a Doutora Veneno (uma de suas piores inimigas até hoje);
  • Surge Etta Candy, uma humana baixinha que se torna sua melhor amiga, e que até hoje frequenta as páginas da revista (embora retratada de maneira menos caricata);
  • Pela primeira vez, a Mulher-Maravilha é amarrada e fica em posição passiva (em duas ocasiões). Quando seu amado Steve Trevor é sequestrado, ela seleciona um grupo de mulheres para salvá-lo, e essas moças vão armadas com… algemas.

A questão das algemas é importante neste primeiro ciclo de histórias da Mulher-Maravilha, em que o roteirista era seu criador, William Marston Moulton. Ele tinha a ideia de usar seus quadrinhos para ensinar as mulheres a não se subjugarem diante dos homens.

Em “Sensation Comics” nº 3, é determinado que, se uma amazona for algemada por um homem, ela perde sua força sobre-humana. Nos quadrinhos, é uma espécie de maldição infligida pela deusa Afrodite, para que suas amadas amazonas não incorram novamente no erro de confiar (e serem derrotadas) por um homem, como a rainha Hipólita fez séculos antes diante do semideus Hércules.

Fora dos quadrinhos, entretanto, trata-se de uma metáfora a respeito da condição das mulheres diante dos homens. Pode ser interpretado como “uma mulher só é forte enquanto está livre” ou de outras maneiras, sempre associando a força de uma mulher à sua liberdade e à sua capacidade de não abaixar a cabeça diante de um homem.

Essas ideias sobre o poder feminino são demonstradas de várias maneiras nas primeiras histórias da Mulher-Maravilha, principalmente por meio das falas das personagens:

  • “Quem tem medo de um homem?”. “Se é um homem, então podemos com ele!”, gritam as amigas de Etta Candy quando partem para resgatar Steve Trevor;
  • “Faz com que uma garota perceba como ela tem que tomar cuidado neste mundo dos homens”, lamenta a Mulher-Maravilha após ser acorrentada por um homem;
  • “Suas estúpidas! Quando vocês deixam seus homens as amarrarem (ou obrigarem, depende da tradução), vocês se deixam ser ligadas por guerra, ódio, ganância e luxúria pelo poder! Pensem! E libertem-se! Controlem esses que oprimem os outros! Vocês podem fazer isto!”, grita a Mulher-Maravilha, ao libertar fêmeas escravizadas no planeta Urano.

Em muitas ocasiões, como nos livros “The Steranko History of Comics”, de Jim Steranko, e “Super Heroes, a Modern Mythology”, de Richard Reynolds, Marston foi acusado de usar seus roteiros para extravasar suas fantasias sexuais por dominação feminina. A quadrinista e estudiosa das hqs Trina Robbins discorda ao retratar a origem da Mulher-Maravilha em seu livro “The Great Women Super Heroes”. Para ela, era um recurso comum às histórias dos primeiros superheróis que os protagonistas – ou suas namoradas – fossem amarrados e colocados em perigo.

Trina Robbins aponta que Capitão Marvel (da editora concorrente Fawcett) e seus colegas, Mary Marvel e Capitão Marvel Jr., eram amarrados com muito mais frequência que a Mulher-Maravilha – especialmente na boca, uma vez que a origem dos poderes dos três estava no fato de pronunciarem a palavra “Shazam!”, que os transformaria de adolescentes comuns em super-heróis adultos extremamente poderosos.

O jornalista e pesquisador de história das hqs Lee Daniels, por outro lado, descobriu que o assunto “bondage” existia e incomodava leitores, a ponto de a DC Comics ter recebido cartas críticas à revista da Mulher-Maravilha – e as ter repassado a Marston.

A uma dessas cartas, Marston responde:

“Sadismo consiste no prazer com o sofrimento real de outra pessoa. Como amarrar e acorrentar são formas inofensivas e indolores de deixar a heroína ameaçada, podendose criar drama a partir daí, tenho desenvolvido maneiras elaboradas de confinar a Mulher Maravilha e outros personagens”.

…e o laço mágico

Na sétima história da personagem, publicada em “Sensation Comics” nº 7, surge um elemento que se tornou parte indissociável de seu universo: o laço mágico. Dourado e inquebrável, ele tem uma propriedade mágica: a pessoa que estiver envolvida (amarrada) por este laço não poderá mentir.

Esta é a primeira história em que a Mulher-Maravilha retorna à Ilha Paraíso. Lá, disputa um novo torneio com as demais amazonas, e mais uma vez vence. Como prêmio, uma amazona chamada Metala faz o laço mágico a partir do cinturão mágico da rainha Hipólita.

O laço possuía, então, uma propriedade diferente da de hoje: quem estivesse envolvido por ele era obrigado a obedecer à Mulher-Maravilha, e não apenas a dizer a verdade.

Com a criação do laço mágico, passou a crescer o número de pessoas amarradas ou algemadas nas histórias da Mulher-Maravilha. “Todas as histórias de Wonder Woman continham ao menos uma cena importante – em geral várias – de alguém amarrado”, escreveu Gerard Jones no livro “Homens do Amanhã”. Segundo ele, Josette Franl, membro do Conselho Editorial Consultivo da DC, advertira o editor Max Charles Gaines de que as histórias da Mulher-Maravilha poderiam “deixá-lo vulnerável a um bom volume de críticas…. em parte por causa dos trajes da mulher (ou falta deles), e, em parte, devido aos trechos de inspiração sádica, com mulheres amarradas, torturadas etc.”

Mas não houve interferência nas histórias. A Mulher-Maravilha, volta e meia, era aprisionada ou algemada por vilões; com uma frequência maior, amarrava alguém com seu laço mágico.

É comum, nas histórias de super-heróis, a captura de um refém ou de um super-herói, geralmente para criar momentos de tensão. Este recurso foi levado ao extremo no seriado televisivo do Batman dos anos 60, estrelado por Adam West. O personagem-título era frequentemente capturado por algum vilão (Coringa, Pinguim, Charada, Mulher-Gato) e deixado para morrer em uma armadilha “infalível”. A cena era interrompida para o comercial, e no retorno, obviamente, ele se salvava.

Jamais houve acusação de sexualidade sobre estas cenas do seriado do Batman. Este recurso, obviamente, não era exclusivo dele. Todos os super-heróis dos quadrinhos já foram derrotados, subjugados, desmacarados… E sempre deram a volta por cima. Mas a Mulher-Maravilha foi a primeira super-heroína importante e, como consequência, o primeiro alvo de ataques. Não fez diferença: ela não abriu mão de seu laço mágico.

Pós-Marston

De 1943 a 1947, quando William Marston Moulton morreu, a Mulher-Maravilha era uma personagem não só de sucesso, mas quase “onipresente”: nestes cinco anos, apareceu na capa de 131 revistas, o que dá uma média de 26,2 capas por ano, ou pouco mais de duas capas por mês.

Além disso, ela também passou a estrelar histórias nos jornais. Sua estreia foi em 8 de maio de 1944. A experiência, entretanto, não deu certo: durou menos de um ano. O negócio dela era mesmo as revistas – especialmente suas capas. A Mulher-Maravilha aparecia com frequência nas capas de “Sensation Comics”, que era mensal, e das trimestrais “Wonder Woman”, “All Star Comics” e “Comics Cavalcade” (estas três se tornariam bimestrais a partir de 1946). Com tantas aparições, Moulton e o desenhista Harry G. Peter foram sedimentando a mitologia que envolvia a personagem. O caldeirão que continha mitologia grega, Segunda Guerra, super-heróis e as teorias feministas de Moulton apresentava uma mistura cada vez mais coesa.

Os espiões (agora declaradamente nazistas) eram frequentes, assim como as histórias que tinham os combates da Segunda Guerra Mundial como pano de fundo. O clima de “ensinamentos” para a mulher moderna, que deve ser livre, e as aparições de personagens amarrados ou algemados também continuaram frequentes.

A beleza da Mulher-Maravilha, uma de suas marcas mais características, ainda não era tão destoante. Apenas Steve Trevor a elogiava, chamando-a de “my beautiful angel” (meu belo anjo).

Há algumas histórias de fundo social. Em uma, a Mulher-Maravilha combate uma companhia internacional que vende leite muito caro. A heroína chega a organizar uma passeata que conta com a participação de mães e crianças pobres. Em outra, ela combate uma empresa que força seus funcionários a trabalhar em condições subumanas. Para tanto, ela hipnotiza a dona da companhia e a força a trabalhar como uma operária comum. Depois, liberta-a do transe, e a empresária altera, para melhor, as condições de trabalho de sua firma.

O primeiro número da “Wonder Woman” foi publicado no verão de 1942 nos EUA (inverno, no Brasil). A revista começou como trimestral, e alterou sua periodicidade entre bimestral e trimestral até o nº 63, de janeiro de 1954, quando passou a ter oito edições por ano (hoje, é uma revista mensal). Este número inicial teve um número maior de páginas, 64, e recontou a origem das amazonas e da Mulher-Maravilha, realçando a importância da mitologia grega.

A história reconta a chegada da Mulher-Maravilha aos Estados Unidos, quando ela levou o combalido Steve Trevor, sobrevivente de um confronto aéreo próximo da Ilha Paraíso. A heroína deixa cair um pergaminho escrito em grego antigo. Um arqueólogo traduz o texto, que revela que o planeta Terra era comandado por divindades rivais: Ares (também chamado de Marte), deus da guerra, e Afrodite, deusa do amor e da beleza.

Os guerreiros de Marte escravizavam as mulheres. Afrodite, entretanto, moldou com suas mãos uma raça de supermulheres mais forte que os homens: as amazonas. A deusa ainda presenteou a rainha amazona, Hipólita, com seu cinturão mágico. As amazonas construíram uma cidade, Amazônia, e passou a haver, na Terra, uma representação da batalha que havia no panteão dos deuses: os guerreiros de Marte contra as amazonas de Afrodite. Quando parecia que haveria paz entre os dois povos, Hércules, líder dos guerreiros, trai Hipólita e derrota as amazonas, que são transformadas em escravas.

Este fato é o mesmo narrado brevemente na primeira hq da Mulher-Maravilha, publicada em “Sensation Comics” nº 8, mas aqui é recontada com maior riqueza de detalhes. É contado, por exemplo, que quando as amazonas migraram da Grécia para a Ilha Paraíso, a princesa Diana ainda não havia nascido. Ela foi esculpida em barro pela rainha Hipólita, guiada por Atena (deusa da sabedoria), e transformada de barro em ser humano por Afrodite.

Além dos detalhes, a única diferença das histórias originais é o fato de que Diana recebeu seu laço mágico quando ficou decidido que ela deixaria a Ilha Paraíso, e não em seu primeiro retorno à sua terra natal. Também é estabelecido que o inimigo que abateu o avião de Steve Trevor sobre a Ilha Paraíso é um espião japonês a serviço de um agente de Hitler. As nacionalidades não haviam sido mencionadas nas primeiras histórias. Mas “Wonder Woman” nº 1 foi publicada no final de 1942, e o terror da guerra estava muito mais presente na sociedade norte-americana; as nacionalidades passaram a ser importantes para identificar os adversários. Mesmo nas histórias em quadrinhos.

Um amor…

A questão da identidade secreta é muito importante para um super-herói. Fica melhor ainda quando é acrescentada a questão do amor. Um(a) coadjuvante que mexa com o personagem principal dá uma força maior às histórias. Superman, o primeiro super-herói, tinha (e ainda tem) Lois Lane, por quem nutriria um amor não correspondido de décadas. A DC Comics só casaria os personagens em 1996, 58 anos após a criação de ambos.

A tensão criada nas histórias de Superman era perfeita. Lois Lane queria descobrir a identidade secreta do herói, por quem era apaixonada; Clark Kent, por sua vez, era apaixonado por Lois Lane, que o menosprezava.

Marston conseguiu criar, à sua maneira, uma situação de romance nas histórias da Mulher-Maravilha, envolvendo identidades secretas, amor não realizado e o que hoje se poderia chamar de “diferenças irreconciliáveis”.

O único motivo para a princesa Diana abrir mão de sua Ilha Paraíso e ir para o mundo dos homens foi a paixão à primeira vista por Steve Trevor, então um militar importante, mas que ela conheceu como um homem ferido enquanto lutava pela democracia. Ao levá-lo para o mundo dos homens e tentar viver próxima a ele, adotou duas novas identidades: Mulher-Maravilha e Diana Prince.

Como Diana Prince, foi primeiramente uma enfermeira que o acompanhou no hospital em que estava internado. Depois, foi trabalhar como secretária no Exército norte-americano, novamente para ficar junto dele. Foi subindo na hierarquia, chegando a tornar-se segundo-tenente e até capitã (apenas em novembro de 1966), mas não conseguia se aproximar dele como interesse amoroso. O motivo: ele estava perdidamente apaixonado por sua outra identidade, a Mulher-Maravilha.

Apesar de conviver diariamente com Diana Prince, mulher recatada escondida atrás de um penteado conservador, óculos e roupas sérias, e de ser um dos melhores membros do serviço secreto norte-americano, Steve não conseguia perceber que ela e a Mulher-Maravilha eram a mesma pessoa. Exatamente a mesma situação de Lois Lane, uma das melhores jornalistas do país, mas que não percebia que a maior notícia do mundo, a identidade secreta do Superman, estava a meio metro dela, como o pacato Clark Kent.

A situação da princesa amazona era ainda pior. Mais cedo ou mais tarde, Lois Lane e Clark Kent poderiam se entender e ter um relacionamento. Já a Mulher-Maravilha deveria respeitar as Leis de Afrodite, normas culturais e tabus cuja desobediência acarretaria na perda da identidade amazona e de todos os privilégios que vêm com isso, como imortalidade, beleza eterna e poderes sobre-humanos. E uma dessas leis proibia o casamento.

A primeira vez em que Trevor pede a Mulher-Maravilha em casamento acontece no último quadrinho da 12ª história da personagem, “Wonder Woman Goes to the Circus!”, publicada no número de estreia de “Wonder Woman” (1942): “Mulher-Maravilha, meu belo anjo! Não me deixe. Fique comigo para sempre!”, diz o apaixonado militar. E a resposta é: “Steve querido: eu não posso! A lei das amazonas proíbe. Mas eu estarei sempre próxima a você – às vezes mais próxima do que você suspeita!”. E ponto final.

As diferenças entre eles, entretanto, são ressaltadas em algumas histórias. Enquanto a Mulher-Maravilha batalha incessantemente pela igualdade dos sexos e pela afirmação de que as mulheres também deve ter seu espaço e comandar, pois são guiadas pelo amor, e não pela guerra, Steve Trevor é descrito como um homem machista.

Enquanto na frente da Mulher-Maravilha ele é galanteador – só a chama de “my beautiful angel” (meu belo anjo), por trás toma atitudes como esnobar Diana Prince, com frases como “este não é um trabalho para uma mulher”.

Em uma história de 1945, Trevor diz à Mulher-Maravilha: “Você foi soberba, anjo. Se você apenas se casasse comigo…” E ela responde: “Eu me casaria, Steve. Eu teria que fingir que sou mais fraca do que você para te fazer feliz – e nenhuma mulher deve fazer isso”. É o lado psicólogo e conselheiro de William Moulton Marston falando. As mulheres não devem se submeter aos homens: devem ser tão fortes quanto eles. E os homens, tão moralmente inferiores, sentem-se infelizes se em algum aspecto não se sentem melhores do que seus cônjuges.

Em outra história de 1945, um grupo de inimigos da Mulher-Maravilha, a Liga de Proteção aos Transgressores da Lei (Lawbreakers’ Protective League) bola um plano original: já que a Mulher-Maravilha é invencível, o jeito é deixá-la de lado. Assim, querem forçá-la a se casar, o que a tornaria uma dona de casa que não mais os importunaria.

Para tanto, eles aumentam brutalmente a força de Steve Trevor, que se torna ainda mais forte que a sua amada. Ao encontrar a Mulher-Maravilha, o militar agora superforte toma uma atitude bem machista: levanta-a no ar, demonstrando sua força, e diz: “agora eu posso mandar em você”, e ri. Ela responde no ato: “Nenhum homem pode mandar em uma amazona”.

A princesa fica em dúvida diante da transformação do seu amado. “Algumas garotas amariam ter um homem mais forte do que elas para forçá-las a fazer coisas. E eu gosto? Não sei – é um pouco excitante. Mas não é mais divertido fazer com que o homem obedeça?”. Mais adiante, chega a uma conclusão, e a diz a seu amado: “Descobri que nunca vou amar um homem dominador que é mais forte do que eu!”. Mais lições do psicólogo William Moulton Marston…

Um amor só bastaria para criar a tensão sexual-amorosa que se estenderia por mais de quatro décadas, até fevereiro de 1986, quando a revista da Mulher-Maravilha, bem como sua saga, chega ao fim (e o romance entre Steve e Diana, ao seu desfecho inevitável: o casamento). Uma nova história passaria a ser recontada a partir de 1987, com o lançamento da segunda edição da revista “Wonder Woman”. Conceitos e personagens seriam reaproveitados, e alguns modificados. Steve Trevor estaria lá, mas não seria mais o amor da vida da princesa Diana. Já os supervilões…

…e muitos inimigos

Os supervilões são uma constante na vida de um super-herói. Nos anos 40, quando a Mulher-Maravilha começou a fazer sucesso e bombar nas bancas norte-americanas, eles começaram a aparecer com frequência em suas páginas. Não eram superpoderosos, como a maioria dos supervilões dos dias de hoje, nem necessariamente usavam uniformes. Mas tinham nomes estranhos, como a Doutora Veneno, e usavam recursos surpreendentes.

Naquele momento, em plena Segunda Guerra Mundial, a nacionalidade deles era importante. Surgem os espiões japoneses Doutor Cue, San Yan e Ishti; a baronesa alemã Paula Von Gunther (que iria se regenerar e se tornar sua aliada e amiga) etc. Muitos vinham de nações fictícias como Bitterland (que poderia ser traduzida como “Terra Amarga”), Anglonia, Bourabia, Ilhas Zani e Zarikan, entre outras.

Uma dessas inimigas estrangeiras é a rainha Cléa, monarca da nação atlante Venturia. Poderosa, tornou-se uma rival recorrente da Mulher-Maravilha durante a Era de Ouro. Ela participou da estreia da Corporação da Vilania (Villany Inc., no original), o principal grupo de inimigos da Mulher-Maravilha. Na versão original, que surgiu na última história escrita por Marston, a Corporação da Vilania era formada por Blue Snowman (uma mulher disfarçada de homem), Mulher-Leopardo, Doutora Veneno, Eviless, Giganta, Hypnota e Zara; no século 21, ou seja, na atual cronologia, o grupo é formado pela rainha Cléa (agora, a líder), Doutora Veneno, Giganta, Trindade, Soturna e Cyborgirl.

Nem todas as inimigas eram estrangeiras, é claro. Uma delas é Giganta, uma mulher muito forte e selvagem. Hoje, décadas depois, o conceito de Giganta foi alterado e ela pode aumentar de tamanho até fazer jus ao codinome – e sua força aumenta proporcionalmente. Sua origem, quando debutou em “Wonder Woman” nº 9 (verão de 1944, inverno no Brasil), é uma das mais estranhas para o universo da Mulher-Maravilha: trata-se do fruto de uma experiência de um cientista louco, que colocou o cérebro de uma macaca chamada Giganta no corpo de uma fisiculturista ruiva. A personagem fez sucesso e, décadas depois, era uma das principais vilãs do seriado televisivo dos Superamigos, ao lado de figuras como Lex Luthor, Coringa e Charada, na Legião do Mal.

Um dos poucos vilões homens da galeria de primeiros inimigos da Mulher-Maravilha é o Doutor Psycho, criado em “Wonder Woman” nº 5 (junho-julho de 1943). Trata-se de Edgar Cizko, um psicoterapeuta de baixa estatura (1,19m de altura e 38,5 quilos, segundo a “The DC Comics Encyclopedia”), mas enorme poder, capaz de hipnotizar e criar ilusões. Sua noiva o trocou por um atleta campeão. Com essa “motivação” inocente, mas típica dos quadrinhos da Era de Ouro, tornou-se um sádico que, nas palavras da Mulher-Maravilha, é um “monstro” que quer “mudar o status de independência das modernas mulheres norte-americanas de volta para a época dos sultões e mercadores de escravos, correntes cintilantes e cativeiros abjetos”. Ou seja, era a personificação de carne e osso de tudo aquilo que a Mulher-Maravilha combatia. Talvez por isso tenha se firmado como um dos seus mais interessantes inimigos, presente nas histórias até hoje.

Na edição seguinte, “Wonder Woman” nº 6, surgiu outra inimiga fascinante: Cheetah, conhecida no Brasil como Mulher-Leopardo. Trata-se de Priscilla Roth, uma mulher rica com um enorme complexo de inferioridade que a faz ter dupla personalidade. Como Mulher-Leopardo, ela veste uma fantasia inspirada no animal que a batiza e combate a Mulher-Maravilha com enorme ferocidade, apesar de não ter poderes. A personagem perdurou e ganhou mais três versões com o passar das décadas: Deborah Domaine, também sem poderes, sobrinha de Priscilla Roth; a britânica Barbara Ann Minerva , que tem poderes de origem mística e se transforma em um poderoso híbrido entre mulher e leopardo, forte o suficiente para derrotar a Mulher-Maravilha (é a versão que apareceu no filme lançado ano passado); e até uma versão masculina, o argentino Sebastian Ballesteros. Estas três versões, entretanto, só surgiram a partir dos anos 80, sendo Priscilla Roth a Mulher-Leopardo “clássica”.

Assim como esta vilã, muitos antagonistas também não precisavam ter habilidades sobre-humanas para oferecer perigo à Mulher-Maravilha. Afinal, a heroína era mais forte, veloz e inteligente que um ser humano normal, mas não nas proporções de hoje. Nos dias atuais, editores e roteiristas têm de usar muita criatividade para criar desafios à altura de uma personagem tão poderosa quanto ela.

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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