Há alguns dias, o leitor Daniel Mattoso me escreveu para comentar um texto deste blog sobre a Mulher-Maravilha. Comentei com ele que havia escrito um livro sobre ela, 15 anos atrás, mas que nunca havia sido publicado (história chata, não vou comentar aqui).

Daniel me falou que gostaria de ler este livro e me deixou com uma pulga atrás da orelha. Será que mais gente teria interesse?

Por fim, resolvi publicar. Vou “lançar” o “livro” aqui no blog, com o nome de “Dossiê Mulher-Maravilha”. Ele será dividido em dez posts – nove deles escritos há 15 anos, e um redigido especialmente para esta série.

No capítulo de hoje, vamos abordar, entre outros temas:

  • A origem do gênero dos super-heróis – e como não havia espaço para as super-heroínas;
  • Um pouco da vida de William Moulton Marston, criador da Mulher-Maravilha ao lado de Harry G. Peter;
  • Os conceitos originais – vindos da psicologia e da Mulher-Maravilha – que Marston utilizou na criação da Mulher-Maravilha.

Amanhã falaremos da criação da mitologia da Mulher-Maravilha durante a chamada Era de Ouro dos Super-Heróis.

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Amável como Afrodite, sábia como Atena, com a velocidade de Mercúrio e a força de Hércules, ela é conhecida apenas como Mulher-Maravilha, mas quem ela é ou de onde ela veio, ninguém sabe!

(parágrafo de introdução da primeira história da Mulher-Maravilha, “Introducing Wonder Woman”, publicada em “All Star Comics” nº 8, revista com data de publicação de dezembro de 1941/ janeiro de 1942)

Primeiro quadro, na página de abertura: um homem pré-histórico caminha cabisbaixo rumo à caverna. O requadro (recurso muito utilizado nas histórias em quadrinhos, normalmente um retângulo, em que aparece a narração) informa: estamos em 30.000 antes de Cristo.

Este homem foi ferido enquanto caçava. Abatido, humilhado por ter sido derrotado e sofrendo com os dolorosos sentimentos que recebeu, ele volta para a caverna que habita. Sua companheira tenta consolá-lo.

Furioso, ele a agride, matando-a.

É assim que começa a história da Mulher-Maravilha. Pelo menos, a versão dela que é conhecida hoje. Afinal, a saga da “Princesa das Amazonas” começou a ser publicada em 1941. Ela, como todos os outros personagens das histórias em quadrinhos norte-americanas surgidos neste período, passou por inúmeras fases.

Dependendo dos objetivos da equipe formada por editores, roteiristas e artistas, bem como do público-alvo, as histórias adotam tons diferentes. No início, durante a Segunda Guerra Mundial, eram aventuras de espionagem e guerra, com nazistas, japoneses e muitos elementos de fantasia. Depois, nos anos 50, houve uma guinada para a ficção científica, com viagens a quase todos os planetas do Sistema Solar (que eram devidamente habitados), ao passado, ao futuro e a outras dimensões.

Mais adiante, houve uma maior integração com os outros personagens da DC Comics, a editora da Mulher-Maravilha. Outros super-heróis passaram a frequentar as páginas de suas histórias, que também “importaram” conceitos criados em outras revistas, como “Justice League of America” (Liga da Justiça, em português) e os títulos estrelados por Batman e Superman.

Enfim, houve uma maior integração com os demais super-heróis da DC Comics, inclusive em 1985 e 1986. Nestes dois anos, a editora decidiu reformular sua linha editorial. Um grande evento marcaria o fim de uma era de décadas de histórias. Seus personagens seriam reapresentados desde o início: as primeiras motivações, aventuras iniciais, como e por que eles decidiram se tornar super-heróis.

Muitos dos conceitos e das histórias anteriores seriam reaproveitados. Especialmente no caso da Mulher-Maravilha. A mitologia criada ao redor dela, especialmente nos anos de 1941 a 1947, quando as histórias eram escritas por seu criador, é riquíssima. Houve mudanças, pequenas adaptações, mas a linha condutora foi mantida. Ela passaria por novas reformulações significativas, como todos os super-heróis de quadrinhos passam de tempos em tempos, mas não naquele momento.

Aquela era a hora de “limpar a bagunça”. De puxar dos personagens o que eles tinham de melhor. E isso nos leva à caverna pré-histórica citada parágrafos atrás. Foi nela que começou a história da Mulher-Maravilha, no nº 1 da segunda série da revista. A primeira série, lançada em 1942, fechou seu ciclo no nº 329, exatamente para esta reformulação. E tudo partia do zero naquele fevereiro de 1987, quando o primeiro número da segunda série da revista “Wonder Woman” foi lançado.

Mas nenhuma história parte do zero, especialmente a de uma personagem como ela: foram cerca de 14 mil páginas de HQs com a Mulher-Maravilha em todos estes anos, contando-se apenas as revistas em que ela apareceu na capa.

Para o leitor que pegar hoje uma revista da Mulher-Maravilha em mãos, a “cronologia” da personagem começa em fevereiro de 1987. É daí em diante que as histórias contam. Mas, para um olhar mais próximo sobre a personagem, é preciso ver o que houve antes disso, em todas estas décadas. É lá que estão o laço mágico, o avião invisível, o uniforme com a bandeira norte-americana, o bracelete que repele balas, o seriado de televisão estrelado por Lynda Carter etc.

Na verdade, é preciso recuar antes mesmo da primeira aparição da personagem, em dezembro de 1941. Foi ali que ela “nasceu”, mas começar a tentar entendê-la dali não é o suficiente para compreender o tamanho da sua importância dentro das histórias em quadrinhos e do gênero de super-heróis.

Afinal, sempre há uma pré-história, que é onde as histórias realmente começam.

O nascimento de um gênero

Quando a revista em quadrinhos “Action Comics” nº 1 foi colocada à venda nos Estados Unidos, no final de 1937 (ainda que com data de junho de 1938), havia algo diferente nela: um homem fantasiado com as cores azul, amarela e vermelha (as três cores primárias, fortes o suficiente para se manter, mesmo se a qualidade de impressão fosse muito ruim). Este homem levava um carro sobre a cabeça, sustentando-o sem artifício algum, apenas com sua força sobrenatural. Havia ainda mais três homens na mesma capa: dois fugiam assustados e o terceiro olhava, estupefato, como se perguntasse: “Que espécie de homem é tão forte? E por que ele se veste deste jeito?”.

Não era apenas um homem fisicamente diferente dos outros: era também uma atitude de heroísmo baseada na tragédia – tratava-se do último ser de uma espécie inteira, que sobrevivera à explosão de um planeta. Com o Superman, surgia um novo gênero: o dos super-heróis, gênero este que é “filho” da ficção científica, dos “pulps”, do nascimento de uma nova mídia (as revistas em quadrinhos) e do momento que o mundo atravessava naquele final dos anos 30, com a movimentação que resultaria na Segunda Guerra Mundial (a invasão japonesa à China e a ascensão do nazismo e do fascismo, entre outros).

O gênero dos super-heróis estava nascendo. Não havia uma fórmula básica ou um formato definido de como estes super-heróis deveriam ser, mas, aos poucos, algumas características foram se mostrando essenciais, como identidades secretas, uniformes coloridos, os superpoderes ou habilidades especiais e uma galeria de vilões poderosos aqui há uma controvérsia entre os leitores e os estudiosos de histórias em quadrinhos: afinal, o Batman tem superpoderes ou não? A resposta é: ele já venceu o Superman inúmeras vezes em brigas diretas. Se ele possui ou não características sobre-humanas, não importa: é como se ele as tivesse.

Se partirmos do ponto que Superman foi, de fato, o primeiro (fãs de Fantasma e Mandrake, por exemplo, contestam), nenhum super-herói no estilo que ficou definido havia sido criado até 1938. Mais dois ainda seriam criados naquele ano: Zatara (uma cópia do Mandrake feita por Fred Guardineer) e o Vingador Escarlate (criado por Jim Chambers).

Tomemos os seguintes números, levantados com base nas oito maiores editoras norte-americanas de então – considerar todas as editoras seria uma loucura, além de desnecessário, porque as pequenas não vingaram ou não tiveram a mesma influência das grandes: 3 super-heróis foram criados em 1938; 14 em 1939; 37 em 1940; 45 em 1941; e 11 em 1942. Ou seja: três em 1938, 107 nos quatro anos seguintes. O gênero foi um sucesso, e as editoras passaram a investir nesses heróis.

Este levantamento foi feito com base nas editoras All-American e National (hoje fundidas na DC Comics), Fawcett, Fox, Harvey, Nedor, Quality e Timely (hoje Marvel). Não foram levantados dados referentes a personagens criados diretamente para os jornais, como o Spirit, de Will Eisner. Mesmo assim, dá para ter uma visão do tamanho do sucesso do gênero, assim como de suas principais características. A maioria dos super-heróis eram homens, assim como seus criadores.

Havia poucas exceções.

Dos 110 personagens levantados de 1938 a 1942 nas revistas das editoras supracitadas, apenas 16 eram mulheres (14,55%). Destas, apenas sete viriam a ganhar títulos próprios – sendo que uma delas, a Hawkgirl, (Moça-Gavião) só ganharia sua própria revista 65 anos após sua primeira aparição. E a primeira a ganhar um título próprio na curiosa história das super-heroínas foi a Mulher-Maravilha.

Nenhuma outra super-heroína surgida no fértil período de 1938 a 1942 atingiu tamanha repercussão. Mais do que ganhar uma revista só dela, a Mulher-Maravilha foi um enorme sucesso: de 1942 a 1948, apareceu em quatro revistas diferentes (“All Star Comics”, “Comics Cavalcade”, “Sensation Comics” e “Wonder Woman”).

A personagem baixinha, magra, de cabelos negros e olhar tímido, mas de nome ostentoso, era um ótimo chamariz para venda de revistas: neste período de sete anos ela apareceu na capa de 179 edições – média de 25 capas por ano, número que ela só ultrapassaria em 1976, com a criação do seriado para a televisão.

A pré-história das super-heroínas

As primeiras super-heroínas surgiram em 1940. É difícil ter “exatidão científica” sobre qual é a primeira. Algumas, menores, podem ter se perdido em edições pequenas que não passaram do número um. Sete, entretanto, estavam entre as editoras maiores, das quais apenas uma sobrevive hoje como personagem que ainda aparece nas histórias: a Tornado Vermelho (Red Tornado, no original).

Criada por Sheldon Mayer, a Tornado Vermelho era uma senhora alta e bem-humorada, que surgiu na revista “All-American Comics” nº 3, de junho de 1939. A partir de novembro de 1940, na “All-American Comics” nº 20, ela passou a “combater o crime” vestindo ceroulas vermelhas e com sua cabeça enfiada em uma panela para proteger sua identidade secreta.

Não parecia uma super-heroína, apesar de ser publicada pela All American (que viria a se tornar a editora DC Comics), que lançou dois dos principais personagens do gênero: Superman e Batman. Suas histórias eram de humor, uma gozação das recém-lançadas histórias de super-heróis.

Abigail Mathilda Hunkel, sua identidade “civil”, ainda está na ativa. Hoje é uma senhora de idade avançada que trabalha na sede da Sociedade da Justiça, um dos grandes supergrupos da DC. Seus tempos de heroísmo ficaram para trás, mas a personagem persiste.

Outras duas super-heroínas que surgiram em 1940 não resistiram à febre inicial e sumiram logo, sendo hoje nomes conhecidos apenas por fãs e historiadores da chamada “Era de Ouro dos Quadrinhos”: Neptina (editora Harvey) e Black Widow (editora Timely; nada a ver com a Viúva Negra, heroína que viria a liderar os Vingadores décadas mais tarde).

Neptina surgiu em janeiro daquele ano, e seria a primeira super-heroína. A segunda seria Fantomah, criada por Fletcher Hanks na revista “Jungle Comics” nº 2 (fevereiro de 1940, editora Fiction House).  Ela combatia vilões usando inúmeros poderes de origem mágica. Suas histórias foram publicadas até 1944, e ela não foi premiada com um título próprio.

The Woman in Red (pode ser traduzido como A Mulher de Vermelho) surgiu em março na revista “Thrilling Comics” nº 2 (editora Standard). Criada por Richard E. Hughes e George Mandel, não tinha poderes, mas escondia uma identidade secreta (Peggy Allen) e usava um uniforme – vermelho, claro. A Viúva Negra (criada por George Kapitain e Harry Sahle) surgiu em agosto daquele ano e apareceu em apenas cinco edições.

Outras duas super-heroínas surgiram naquele ano, mas apenas como coadjuvantes de outros super-heróis: Taia e Bulletgirl (ambas da editora Fawcett). A princesa Taia de Tebas era a amada de um poderoso mago, Íbis. Bulletgirl era a namorada (mulher, posteriormente) de Bulletman, e ambos eram superfortes e podiam voar.

Estes personagens pertencem hoje à editora DC Comics, mas isso não significa que continuem aparecendo. São, digamos, coadjuvantes dos coadjuvantes. Em 2005, minissérie “Os Sete Soldados da Vitória” mostrou o destino deles: Íbis, Taia e Bulletman morreram, e Bulletgirl tornou-se uma senhora aposentada. Como no mundo dos super-heróis, os heróis morrem, as lendas ficam (um dos motes da DC Comics), surgiu um novo Íbis e uma “herdeira” do casal Bala, Bulleteer (Projétil, no Brasil). O novo Íbis é descendente do original, diferentemente da Projétil, que nada tem a ver com seus antecessores.

Ao final do ano de 1940, o saldo era de duas heroínas que durariam no máximo cinco edições (Neptina e Viúva Negra), uma paródia de super-heroína (Tornado Vermelho), duas parceiras de super-heróis (Taia e Bulletgirl), e duas que eram super-heroínas, mas ainda não tinham alcançado a independência para ter um título próprio (Fantomah e The Woman in Red). Além destas, havia super-heroínas que não apareciam em revistas, mas em tiras de jornais: Lady Luck e Invisible Scarlet O’Neil.

Brenda Banks, a Lady Luck, foi criada em 1940 por Will Eisner, sob o pseudônimo de Ford Davis, e Chuck Mazoujian. Assim como o Spirit, a maior criação de Eisner, Brenda não possuía superpoderes. E se o Spirit atuava com um uniforme predominantemente azul, Brenda, descendente de irlandeses, optou pelo verde.

Will Eisner, entretanto, escreveu apenas as duas primeiras histórias, dando lugar a Dick French nos roteiros. As HQs de Lady Luck eram publicadas primeiramente em jornais, na seção de quadrinhos. Suas aventuras seriam republicadas pela editora Quality na revista “Smash Comics”, de 1943 a 1949 (nº 42 ao 85). A revista mudou de nome no nº 86 (dezembro de 1949), virando “Lady Luck”; ficou assim por apenas cinco números, até o 90 (agosto de 1950), quando foi cancelada.

Outra heroína nascida nos jornais, a Invisible Scarlet O’Neil foi criada por Russell Stamm. Ela não tinha identidade secreta ou uniforme, mas podia ficar invisível para entrar em ação. Invisible Scarlet O’Neil é apenas um dia mais nova que Lady Luck, publicada pela primeira vez em 2 de junho de 1940.

Uma curiosidade a respeito das super-heroínas de 1940: há ainda a Madame Fatal, criada por Art Pinajian na revista “Crack Comics” nº 1 (maio, editora Quality). A identidade secreta dela era Richard Stanton, um ator aposentado que se disfarçava com peruca e um vestido vermelho para combater o crime: uma super-heroína trans.

Trina Robbins, autora de “The Great Women Super Heroes”, resume assim o surgimento de super-heroínas até a aparição da Mulher-Maravilha:

“Esta era a situação da maioria das heroínas em quadrinhos de ação. Nenhuma jamais apareceu em sua própria revista, e eram, invariavelmente, de curta duração, raramente durando mais do que três aparições antes de desaparecer na obscuridade permanente. Frequentemente eram apenas companheiras do herói mais importante do sexo masculino. Em sua maioria, quando as mulheres apareceram em quadrinhos, foram relegados ao papel da namorada, e seu objetivo era ser resgatada pelo herói. Meninas leitoras poderão encontrar pouca coisa nos modelos heroicos das páginas dos quadrinhos.”

William Moulton Marston, o psicólogo

A primeira grande super-heroína, com identidade secreta, superpoderes e uniforme, que viria a combater supervilões e alienígenas e a conviver com outros super-heróis, viria mais de um ano depois, em dezembro de 1941, na revista “All Star Comics” nº 8.

Sua origem, envolvendo mitologia grega e a Segunda Guerra Mundial, era diferente da de todos os seus “colegas” de capas e poderes. Mas a história por trás de sua criação torna a personagem única entre os super-heróis. Eis que entra em cena o psicólogo William Moulton Marston (nascido em 9 de maio de 1893 e morto, em 2 de maio de 1947) aos 53 anos.

Doutor em psicologia desde 1921, Marston estudava as emoções humanas. Uma de suas mais importantes pesquisas foi sobre a relação entre o desconforto emocional e o aumento da pressão sangínea. Suas descobertas e inúmeros testes são tidos como antecessores da invenção do polígrafo (detector de mentiras). Este trabalho despertou o interesse do Conselho de Psicologia do National Research Council (órgão da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos). A ideia era levar o estudo adiante para ajudar no combate contra a espionagem. Contatos foram feitos, mas Marston não chegou a ser contratado.

Outra de suas pesquisas foi sobre a “baby party”, espécie de cerimônia de iniciação em uma escola só para mulheres. As calouras desta escola eram vestidas como bebês, amarradas e subjugadas pelas veteranas. Ajudou-o neste estudo sua assistente Olive Byrne, com quem teve um caso.

Marston contou para a mulher, a também psicóloga Elizabeth, que tinha uma amante. O problema foi resolvido de maneira pouco usual para a época (e mesmo para os dias de hoje): Marston, Elizabeth e Olive passaram a viver todos sob o mesmo teto. O psicólogo teve quatro filhos: Pete e Olive Ann (com Elizabeth), e Byrne e Donn (com Olive).

Ainda antes de seu caminho e o das histórias em quadrinhos se cruzarem, Marston seguiu uma boa carreira acadêmica até 1928, quando publicou o livro “The Emotions of Ordinary People” (“As Emoções das Pessoas Comuns”). Ele citava a “baby party” e defendia que todos os seres humanos podem ser compreendidos sob quatro unidades complementares de comportamento: domínio, influência, constância e submissão. O livro foi tão mal aceito que abalou definitivamente sua carreira universitária.

O psicólogo oscilou e então tentou recuperar sua carreira, usando seu polígrafo em prisioneiros já condenados ou em suspeitos de crimes. Em 1938, chegou a publicar em uma revista o anúncio “Would YOU Dare Take These Tests?” (VOCÊ Ousaria Se Submeter a Estes Testes?), na forma de duas fotonovelas com quatro imagens, em linguagem muito próxima das histórias em quadrinhos (se for usada a definição apresentada por estudiosos como Will Eisner e Scott McCloud, fotonovelas e histórias em quadrinhos são a mesma coisa: arte sequencial).

No anúncio, que dizia ser baseado em fatos reais, uma socialite infeliz procurou Marston, para descobrir o motivo de seus problemas. Ao usar o polígrafo nela, descobriu que ela não era apaixonada por seu noivo, mas por um amigo de infância. Mais: que o rapaz também era apaixonado por ela. Graças ao detector de mentiras, portanto, eles se reencontraram e viveram felizes para sempre…

Charles Moulton, o roteirista de quadrinhos

Marston concedeu uma entrevista sobre histórias em quadrinhos que foi publicada em 25 de outubro de 1940, no auge da febre dos super-heróis. A matéria foi publicada na revista “Family Circle”, com o título “Don’t Laugh at the Comics” (“Não Ria das Histórias em Quadrinhos”), e era assinada por Olive Byrne, sob o pseudônimo de Olive Richard. Marston criticava o excesso de violência das histórias em quadrinhos, mas afirmava que eças possivelmente chegassem ao “ponto nevrálgico dos desejos e aspirações universais da humanidade”.

Max Charles Gaines, um dos cabeças por trás das “editoras irmãs” All American e DC Comics, que viriam a se fundir na DC Comics, convidou Marston a integrar o novo conselho editorial consultivo da DC/All American. O nome de um doutor, formado em Psicologia e Direito por Harvard e interessado em histórias em quadrinhos, daria legitimidade a este órgão, que estava sendo criado justamente para combater as acusações que começavam a cair sobre as histórias de super-heróis.

Em uma conversa com Gaines, em 1940, Marston questionou por que sua editora não possuía super-heroínas. Em uma carta ao historiador de quadrinhos Coulton Wagh, Marston relembrou o processo:

“Entre outras recomendações que eu fiz para melhorar os quadrinhos estava uma sugestão de que a mulher do amanhã dos Estados Unidos deveria ser o herói para um novo tipo de história em quadrinhos. Por isso eu queria um personagem com todo o fascínio de uma mulher atraente, mas com a força de um homem poderoso.Os editores insistiram em que uma mulher protagonista nos quadrinhos sempre fracassava. Mas o sr. Gaines, que descobriu Superman, se ofereceu para publicar a tira proposta da Mulher em uma revista em quadrinhos por seis meses, se eu a escrevesse. Concordei em fazer sob um pseudônimo, Charles Moulton.”

Entre conversa e estreia da personagem, foi mais de um ano: a MulherMaravilha teria sua primeira aparição apenas em dezembro de 1941.

Nesse meio-tempo, Marston e Gaines bolaram uma outra personagem, que nunca chegou a estrear: Diana, uma versão feminina do Tarzan, batizada com esse nome em homenagem à deusa da caça da mitologia romana (Ártemis, para os gregos). A personagem não chegou a ser publicada. De outra sugestão de Marston que não foi adiante, sabe-se apenas o nome: Suprema, a Mulher-Maravilha.

À época da estreia da Mulher-Maravilha, Marston tinha 48 anos, bem diferente de seus colegas roteiristas da época, que ainda estavam todos na casa dos 20 anos. Jerry Siegel (1914-96) e Joe Shuster (191492) tinham 23 quando publicaram a primeira história do Superman. Bob Kane (1915-98) e Bill Finger (1914-74) tinham 23 e 25 anos, respectivamente, quando Batman foi lançado. O mesmo Finger e Martin Nodell (1915-2006) tinham 26 e 25 anos quando surgiu o Lanterna Verde; Will Eisner (1917-2005) era um “senhor” de 23 ao criar o Spirit, em 1940; Jack Kirby (1917-94), 23, e Joe Simon (1913-), 27, lançaram o Capitão América em 1941.

O surgimento dos super-heróis foi um movimento artístico originado por ação dos fãs. Não eram artistas experientes os que estavam por trás das editoras. Eram jovens, alguns amigos entre si, que tinham por volta de 25 anos e haviam crescido lendo ficção científica e pulps. Eles estavam no lugar certo e na hora certa, com uma imaginação acima do comum, e com gana de colocar para fora a criatividade que sempre tiveram.

A maioria dos envolvidos com quadrinhos, naquele período que viria a ser conhecido como a “Era de Ouro”, eram jovens que sonhavam em viver daquilo, de uma indústria de revistas em quadrinhos que ainda estava nascendo, como mostram Will Eisner na graphic novel autobiográfica (mas com nomes mudados) “O Sonhador”, e Gerard Jones no livro “Homens do Amanhã – Geeks, Gângsteres e o Nascimentos dos Gibis”, que aborda exatamente a “Era de Ouro”.

Eram histórias de vida bem diferentes da do psicólogo Marston, bem como de Harry G. Peter, o desenhista escolhido para ilustrar sua personagem. Peter tinha 61 anos em 1941 (nasceu em 8 de março de 1880) e, até hoje, nenhum artista ficou tanto tempo com a personagem quanto ele: foram 17 anos, até 1958, quando morreu.

Marston não era um jovem de 20 anos nem um sonhador. Era um psicólogo com toda uma carreira por trás, com direito à ascensão e queda. O que ele poderia perder, investindo em uma nova carreira? Mesmo assim, não quis arriscar: adotou o pseudônimo Charles Moulton, soma dos nomes do meio de Max Charles Gaines e do seu próprio.

Assim, nascia Charles Moulton, escritor com ideias feministas, que defendia o poder superior das mulheres e que mostraria, em suas histórias, ecos de seu tempo de pesquisador no polígrafo (na forma de um “laço mágico” que obriga as pessoas a dizerem apenas a verdade) e de suas teorias sobre o comportamento humano.

Psicologia + super-heróis = mudança

A primeira história com a Mulher-Maravilha tinha apenas nove páginas, enquanto o padrão de hoje é dezoito. Apesar do tamanho, todas as principais sementes sobre as quais a mitologia da personagem foi criada já estavam lá.

Havia, em algum lugar da América Central, a Ilha Paraíso, uma nação oculta. Um militar norte-americano, o capitão Steve Trevor, caiu com seu avião lá, por acidente, e encontrou uma civilização muito mais avançada que o patriarcado.

Habitada apenas por mulheres guerreiras, o país era governado pela rainha Hipólita, mãe da princesa Diana, a bela morena que encontrou o combalido Trevor. Homem algum havia pisado na Ilha Paraíso, e o militar norte-americano foi tratado pelas médicas locais para posteriormente vir a ser devolvido a seu país de origem.

Enquanto Trevor se recupera, é narrada a história deste povo misterioso, as amazonas. A história é baseada nas amazonas gregas: o que aconteceria se um povo de poderosas mulheres guerreiras existisse, isolado dos homens, por milênios?

Há uma razão para a escolha das amazonas como base das histórias da Mulher-Maravilha. Desde o início, quando a personagem ainda era uma minúscula ideia na mente de seu criador, uma coisa estava clara: ela iria mostrar aos seus leitores que a mulher não era um sexo frágil. Não devia ser subestimada, maltratada, ignorada, deixada de lado em hipótese alguma. Natural, então, que servissem de inspiração para suas histórias as mulheres mais fortes que já existiram – pelo menos é assim que as amazonas eram conhecidas.

Hoje, décadas depois de sua criação, pode não ser esta a ideia que a Mulher-Maravilha passe a um primeiro olhar na capa de sua revista. Bonita, corpo perfeito, uniforme justo, cores da bandeira norte-americana, ela pode dar a impressão de ser uma personagem feminina voltada para adolescentes entrando na puberdade, que buscam gibis com violência pela violência, histórias simples e mulheres bonitas.

Não se deve julgar um livro pela capa – ou uma história em quadrinhos. A Mulher-Maravilha percorreu um longo caminho desde sua criação e hoje não só é uma super-heroína, mas também uma diplomata e uma escritora que publica livros de reflexões, nos quais defende a igualdade entre todas as pessoas, independente de gênero, cor, nacionalidade, religião, orientação sexual, inclinação política etc. Ela dá palestras, leciona cursos, participa de campanhas e combate o crime. Muito para uma só mulher? Claro. Mas de onde você tirou que ela era só uma mulher? Com o surgimento da Mulher-Maravilha, a pré-história das super-heroínas havia acabado.

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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