O fenômeno do quadrinho independente “Cerebus“, do canadense Dave Sim, finalmente vai sair no Brasil. A princípio, seria uma ótima notícia para o leitor de HQs: afinal, trata-se de um raro caso de obra independente com uma história de décadas: a primeira HQ saiu há 45 anos, no distante 1977. Mas há um problema na equação: seu autor.

Antes, uma breve apresentação da obra. “Cerebus” começou como uma paródia bem-humorada de Conan – o personagem-título também é um guerreiro. O humor começa na aparência: trata-se de um porco-da-terra humanizada, e não um homem musculoso. Com o tempo, Sim foi mudando a pegada de sua obra, e “Cerebus” abordou temas bem mais profundos como política, religião e questão de gênero. Ou seja, de paródia escrachada, virou HQ profunda – e com isso amealhou fãs e prêmios, algo bem inovador para uma HQ independente. Uma precursora.

O problema, como disse anteriormente, está em Sim. Erico Assis, em sua coluna no Omelete, escreveu um ótimo texto sobre o tema – praticamente uma aula magna. Separei alguns parágrafos, mas recomendo a leitura completa:

“Começou com os rants, as arengas ou desabafos que Sim publicava na seção de cartas de Cerebus. Contra outros quadrinhos, contra pessoas de quem ele não gostava. O palanque virou espaço para ele discutir política, sociedade, filosofia, relacionamentos. Às vezes com as cartas dos leitores, geralmente destratados. Não havia opinião que vencesse a dele, justificada com textão muito antes do textão de Facebook.

A mais infame destas arengas invadiu a própria HQ na edição 186, de 1994. São 15 páginas sobre o “Vácuo Feminino e a Luz Masculina”, onde Sim discorre a respeito de como as mulheres, que seriam seres naturalmente inferiores, se aproveitam dos homens e que o feminismo é um mal à sociedade. Quinze páginas. Cerebus perdeu leitores, Sim perdeu admiradores. Cerebus e Sim sumiram das listas de melhores e das indicações a prêmios. Foi um cancelamento, como se chama hoje – embora Cerebus tenha continuado.

Sim nunca retirou o que disse. Pelo contrário: anos depois, em outra dessas arengas, disse que existia um ‘eixo feminista-homossexualista’ que comanda a opinião pública. Ficou mais intratável em entrevistas, mesmo que poucas. Cerebus atingiu as 300 edições em 2004, mas a comemoração foi mínima. Até grandes fãs dizem que a série podia ter acabado ali pela metade. De preferência, antes de Sim falar merda.”

Enfim, Cerebus está saindo no Brasil pela primeira vez. Achei importante contextualizar aqui a importância da obra para o contexto dos quadrinhos independentes norte-americanos bem como as lamentáveis posições pessoais do autor.

As Espadas de Cerebus – Volume 1” (editora Futuro, tradução de Márcio dos Santos Rodrigues, capa acima) compila as quatro primeiras histórias e já está à venda no Catarse. Separei alguns trechos da descrição da editora:

“A Editora Futuro decidiu iniciar do começo mesmo, para que o público brasileiro tenha acesso a Cerebus desde o seu início, respeitando sua ordem cronólogica original. Dizemos isso, pois, lá fora, a primeira lista telefônica foi com o arco Alta Sociedade, que abrange Cerebus #26 a 50. Mas não vimos sentido em fazer o mesmo no Brasil.
Nossa intenção seria começar logo de cara com uma lista telefônica, abrangendo Cerebus #1 a 25. No entanto, por sugestão do próprio Sim, vamos começar devagar, de forma mais ‘pé no chão’, com a coleção As Espadas de Cerebus, em que cada volume trará quatro histórias, finalizando essa primeira fase no sexto volume com cinco histórias. (…)
Neste primeiro volume, conheça as quatro primeiras aventuras de Cerebus, produzidas originalmente entre 1977 e 1978, onde nosso porco-da-terra é contratado para roubar uma joia de um feiticeiro maligno; em seguida é capturado em terras distantes e é envolvido em magia; tem um inusitado encontro com Sophia, a Ruiva; e, por fim, se vê às voltas com o Elrod, o Albino! Lembramos que certas semelhanças podem não ser meras coincidências!”

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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