Uma vez recebi em casa meu amigo Tiago Almeida, colecionador de quadrinhos, sabe-tudo do tema e, ainda por cima, dono do bar GIBI Cultura Geek, onde tive o prazer de lançar minha graphic novel “Púrpura”.

Mal entramos na sala e, antes mesmo de eu oferecer um copo d’água, ele puxou um livro da estante e me disse:

– “Man”! Você não vai acreditar! Quando eu era criança, peguei esse livro na mão e o li várias vezes. Era bom demais! O nascimento da minha paixão pelos quadrinhos tem tudo a ver com ele…

O livro em questão era “Cada Um no Seu Lugar“, obra de cartuns do maravilhoso argentino Quino, criador da Mafalda. E não foi à toa que a obra despertara tanto interesse no Tiago. O mesmo acontecera comigo.

Mafalda não aparece em “Cada Um no Seu Lugar”. Eu a adoro, claro, mas há uma coisa interessante sobre ela. Sua popularidade é tamanha que ofusca o outro lado do trabalho do Quino. O que é uma pena: seus cartuns são tão brilhantes quanto as histórias da menininha contestadora.

Quino já publicava cartuns e ilustrações antes de criar sua famosa personagem. “Mundo Quino”, seu livro de estreia, é de 1963 – Mafalda “nasceu” no ano seguinte.

O foco de Quino se voltou para a Mafalda, e os livros sem ela só voltaram a ser publicados nos anos 70: “Não me Grite!” é de 1972; “Yo que usted…”, 1973; “Bem, Obrigado. E Você?”, 1976…

E o que os cartuns reunidos nesses livros têm de tão bom?

Para começar, humor, é claro. Mas não só. O hoje aposentado Quino usou seu traço limpo e preciso para abordar temas difíceis: desigualdade social, relação patrão/empregado, materialismo excessivo, pobreza, fome…

Nós brasileiros, estamos acostumados a charges em nossos jornais diários. Elas são, normalmente, mais voltadas a questões políticas: o presidente, o governador, o perfeito…

Os cartuns de Quino são diferentes: atemporais, despersonalizados e mesmo “apátridas”. Ele pode estar falando da fome e da corrupção na Argentina, mas o leitor brasileiro vai se reconhecer ali.

E não é só. Quino também reflete sobre a Arte – e, às vezes, faz Arte pela Arte. São ilustrações metalinguísticas, que brincam com o os elementos gráficos: os balões, as letras, as linhas que constroem os personagens…

Tudo o que está na página é elemento a ser utilizado pelo humor e pela inteligência de Quino. Tudo o que está fora da página, na sociedade que o cerca, também. Se você conhece o trabalho dele apenas pela Mafalda (o que não é pouco), dê uma chance para esse outro lado. É encantador.

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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