Gosto muito de listas. E de planilhas. Assim, quando pensei em lançar este blog Hábito de Quadrinhos, quis começar com uma lista: os dez melhores quadrinistas do mundo em atividade.

Fracassei: impossível ficar só com 10, mas cheguei a 15. Também troquei o termo “melhores”, um pouco arrogante, por “para ficar de olho”. E busquei ser eclético: não dava para fazer uma lista só com 15 mangakás (autores de mangás) ou autores de super-heróis. Há incontáveis gêneros e estilos de quadrinhos – inclusive alguns que sequer chegaram ao Brasil (também falaremos deles).

Sem balbúrdia, por favor! Sei que parece que estou enrolando, mas só queria explicar o que é esta lista… Já chego no Miguelanxo Prado!

Toda lista é subjetiva. Eu poderia tirar esses nomes da cartola, e estaria tudo bem. Mas resolvi usar alguns prêmios internacionais como base: os japoneses Kodansha e Shogakukan; o norte-americanos Eisner Awards e National Cartoonists Society; o brasileiro HQ Mix; os europeus Angoulême e Adamson. Como acompanho esses prêmios há muito tempo, eles já me apresentaram a alguns artistas que hoje adoro. E espero que esta lista de 15 quadrinistas também sirva para apresentar algum para você.

Uma vez feita a lista, poderia começar por qualquer um deles: todos são excelentes. Mas escolhi… Pausa para um momento de suspense (meio inútil, o nome dele está no título do post): Miguelanxo Prado.

Roteirista e ilustrador fantástico, capaz de transitar por vários gêneros, Prado venceu Angoulême pelo lindo álbum “Traço de Giz”, ainda inédito no Brasil. Nascido em 1958 em La Coruña, na Espanha, Prado teve, até onde sei, apenas quatro álbuns publicados aqui no Brasil: “Mundo Cão”, “Cidades Ilustradas: Belo Horizonte”, “Ardalén” e “De Profundis”.

Esta pequena amostra dá a dimensão do quão talentoso e prolífico ele é. “Cidades Ilustradas: Belo Horizonte” tem seu lado observador e ilustrador; “Ardalén” é um drama de 250 páginas profundo, bem narrado e visualmente lindo; “De Profundis” é uma obra poética, e “Mundo Cão”… a razão de eu ter começado por ele. Vou me aprofundar nestes dois últimos.

Uma ideia do que é apresentado em “De Profundis”…

“De Profundis” é a história de um casal que vive isolado em uma pequena ilha no meio do mar. Algo acontece, e surge a história de uma fantasia poética (ou poesia fantasiosa) narrada de uma maneira pouco convencional para uma HQ: as narrações e falas ficam fora dos quadros. É uma diagramação diferente, que lembra um livro de pinturas acompanhado por legendas. Trata-se de uma obra tão diferente que virou um média-metragem: uma animação de 40 minutos dirigida pelo próprio Prado. Adoraria dizer que vale a pena assistir, mas nunca consegui achar uma cópia em lugar algum. (Do livro posso dizer: vale a pena ler.)

Quando eu era um híbrido entre criança e adolescente, a editora Abril lançou uma coleção chamada “Graphic Novel”. Enquanto quase todas as HQs mensais no Brasil eram publicadas em formatinho (super-heróis, Tex, Disney, Turma da Mônica), esta era uma série em formato grande, com histórias diferenciadas. A edição era trimestral e mais cara que o normal. Veja quem estrelou os primeiros números: X-Men, Demolidor, Capitão Marvel, Homem-Aranha, Batman, Homem de Ferro e Batman.

Os títulos mudaram a partir do oitavo número: “O Edifício”, “A Era Metalzóica”, “Void Indigo”… Percebe? Os super-heróis sumiram dali, embora viessem eventualmente a aparecer. Mas o que a Abril estava fazendo era nos apresentar a autores que a maioria do público nunca havia ouvido falar – “O Edifício” foi a primeira HQ do Will Eisner que eu li, e fiquei tão impressionado que fui contar a história para a minha mãe enquanto ela, coitada, estava fazendo faxina.

Sim, cães (bravos!) para mostrar um pouco de “Mundo Cão”

Imagino que alguns leitores que chegaram à série por causa dos heróis a tenham abandonado. Eu segui em frente. E eis que o número 26 era “Mundo Cão”, de Miguelanxo Prado. Não deu outra: detestei. Achei os desenhos feios e o humor, sem graça.

Perdóneme, señor Prado, porque no sé lo que hago!

Eu era acostumado demais apenas HQs infantis ou de super-heróis (os mangás eram raríssimos). Não estava preparado para os desenhos intencionalmente desproporcionais, as retas tortas, os cenários quase expressionistas, as situações de enredo exageradas e até absurdas. Não percebi a crítica social e a inteligência ao retratar uma sociedade com tanto humor e acidez. Relendo, hoje, vejo algo simplesmente incrível. Quis me redimir desta minha primeira impressão abrindo esta lista com ele.

Fosse Prado um homem preso a um gênero, e provavelmente hoje estaria criando um álbum para criticar como parte da sociedade está lidando com a pandemia: criticaria a teimosia em ignorar a ciência, a burrice de achar “tenho menos de 60 anos, não vou pegar” etc. Mas ele não se restringe a um gênero só. E, entre obras tão diferentes, vou escolher uma: “Pedro e o Lobo”.

O rapaz de vermelho tem um nome e tanto: Pedro

“Pedro e o Lobo” (repare no lindo nome do protagonista) é uma sinfonia para crianças. Era a minha favorita quando pequeno, e gosto dela até hoje. Prado a recriou. Ao deixar de ser a sinfonia, perde-se a maravilhosa presença dos instrumentos que acompanham os personagens (o gato é acompanhado por um clarinete; o lobo, por uma trompa; o pato, um oboé).

A adaptação de Prado trouxe um álbum curto nas palavras e nas páginas (menos de 30), mas visualmente rico. Onde havia as linhas tortas e duras de “Mundo Cão”, agora há uma atmosfera sombria, mas cativante, para a história do pequeno menino que adentra uma floresta para enfrentar um desconhecido inimigo (o lobo).

“Ardalén”, felizmente, já saiu no Brasil

Algumas histórias curtas de Prado saíram no Brasil. Em 2003, Neil Gaiman, o maravilhoso escritor por trás da genial obra “Sandman”, resolveu voltar ao título com uma edição especial: sete histórias ilustradas por sete grandes artistas. Participaram deste livro, chamado “Sandman – Noites Sem Fim“, o italiano Milo Manara, o britânico Dave McKean, o norte-americano P. Craig Russell…

Cada história focava em um dos sete Perpétuos – se você não conhece os sete Pérpetuos, faça um favor a si mesmo e dê uma chance a “Sandman”. O conto estrelado pelo protagonista da revista (que se chama Sonho, não Sandman) ficou a cargo justamente de Miguelanxo Prado.

Bela escolha, mister Neil Gaiman.

ps: Este post é o primeiro de uma série chamada “Quadrinistas Maravilhosos”. A ideia é publicar 15 textos nas próximas três semanas. Amanhã é a vez do mangaká Naoki Urasawa, e na sexta, Alex Ross.

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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