É difícil, eu sei, criar boas histórias de super-heróis. São décadas de cronologias que os artistas têm de respeitar – no caso dos X-Men, então, parecem séculos, tamanha a confusão de pais, filhos e versões de outras dimensões…

E há os “elseworlds”. São “dimensões paralelas”, histórias fora da continuidade normal. Ou seja, a dupla roteirista-artista não precisa se preocupar em seguir o longo e intricado status quo de todos os seus personagens. Pode chutar o balde! Por exemplo: o foguete com o Superman, em vez de aterrissar nos Estados Unidos, cai na União Soviética – e ele vira um herói comunista. Ou: o Lanterna Verde mora na Arábia de séculos atrás e seu poder vem de uma lâmpada mágica, em um universo que lembra Aladim e as “Mil e Uma Noites”.

Essa foi só a introdução para o mundo mágico das “realidades alternativas” (outro nome para “dimensões paralelas”). E, mesmo assim, é difícil achar o trigo em meio ao joio. Por isso fiquei tão feliz ao ler “DComposição” (feliz título brasileiro para o intraduzível “DCesead”). Esta minissérie escrita por Tom Taylor e ilustrada por Trevor Hairsine saiu no Brasil com todas os capítulos reunidos em um volume só.

Sim, os protagonistas são super-heróis: a Liga da Justiça e todos os principais heróis da DC Comics, do Superman à Mulher-Maravilha, passando por Batman, John Constantine, Lanterna Verde, Flash e a brasileira Fogo. Mas é uma história de terror.

Um vírus (na verdade, um supervírus que envolve até uma equação matemática) assola a Terra. O contágio ocorre a uma velocidade estonteante e atinge a todos, humanos ou super-heróis.

Histórias de terror já foram escritas aos borbotões. Há duas qualidades no texto de Tom Taylor que distinguem “DComposição” das histórias medianas.

O primeiro é o fato de saber respeitar os personagens. Embora se passe em uma “dimensão paralela”, as personalidades são as mesmas, condizentes com as suas essências. O Batman ainda é a pessoa mais inteligente do mundo, seguida por Lex Luthor; Superman é a essência da coragem e da esperança etc. Seria fácil deturpar o personagem para que ele se adequasse na história – por exemplo, como Zack Snyder fez nos seus filmes, com um Batman burro e facilmente trapaceado por Lex Luthor e um Superman insensível a ponto de deixar o próprio pai morrer.

Ao abrir mão do atalho de deturpar os personagens, Tom Taylor mantém cada um com sua própria voz, o que significa reações diferentes diante de uma pandemia que parece que vai consumir o mundo. Ou seja, autenticidade. Há um super-herói sendo derrotado pelo maldito vírus, mas o que você vê é um ser humano sofrendo. Seu uniforme e seus poderes não fazem diferença. E você sente a dor deles.

O segundo ponto é não recuar. Não há solução mágica (“aí veio a Zatanna, laçnou um feitiço e viveram felizes para sempre” ou “o anel do Lanterna Verde! Como não pensei nisso antes? Ele vai curar a todos!”). Sem tempo para roteirista com preguiça, irmão. Não tem solução fácil. A pandemia só piora.

Página a página, o terror aumenta: se o vírus é invencível, o que vai acontecer com o planeta? Morrerão, primeiramente, os heróis – a primeira frente de batalha do universo que habitam? Sem eles, a próxima a sucumbir é a esperança? Por fim, acabaria a humanidade?

“DComposição” saiu no ano passado nos EUA e recentemente no Brasil. A qualidade garantiu o sucesso e, claro!, a sequência. “DCeased – Dead Planet” (“DComposição – Planeta Morto”) se passa cinco anos depois da original e está sendo lançada por lá na forma de uma minissérie em sete números. Espero que saia logo por aqui.

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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