Liga da Justiça, de 2017, é um filme bizarro. Em seus melhores momentos, lembra um episódio mediano da excelente série de animação homônima produzida no início dos anos 2000. Em seus piores, rivaliza com Esquadrão Suicida, de 2016, na missão de te fazer perguntar do nível “como alguém pagou para lançar aquilo nos cinemas?”.

Mas e se não era para ser assim? E se “Liga da Justiça” tivesse sido o novo “Os Vingadores”, ou um marco tão impactante quanto “Batman: O Cavaleiro das Trevas”, mas por caprichos de um estúdio inescrupuloso e a incompetência de um diretor substituto acabou fadado ao fracasso? Por anos, fãs do cineasta Zack Snyder acreditaram nisso. Afastado da direção do filme após uma tragédia pessoal, ele foi substituído por Joss Whedon (sim, o responsável pelo primeiro sucesso dos Maiores Heróis da… Marvel, nos cinemas). Esse, por sua vez, conduziu uma série de refilmagens para inserir mais humor, leveza e alterar pontos da trama original – teoricamente, muito mais sombria e ambiciosa em sua origem. Deu no que deu…

“Liga da Justiça” parece uma cabo de guerra em forma de filme, travado entre a visão dessaturada, desconstruída e por vezes desinteressante de Snyder contra o humor juvenil e formulaico e a visão romântica de Whedon sobre super-herós, resultando em uma fraca adaptação à DC Comics do tom de sucesso de Os Vingadores e outros hits da Marvel Studios. É uma anomalia na trajetória dos filmes da Distinta Concorrência até então, que também marca o fim do investimento em uma rígida narrativa contínua e uma maior liberdade de tom para cada filme (como vimos em “Aquaman”, “Shazam” e “Aves de Rapina”, desde então). Dissonância, essa, que virou combustível para alguns fãs acreditarem que, tivesse o filme seguido o rumo que seguiria sem a participação de Joss Whedon, seria muito melhor.

Para melhorar: Henry Cavill teve bigode (muito mal) removido digitalmente das refilmagens

Até aí, tudo certo, pois não faltam histórias de quase-filmes nos anais do cinema mundial: de Nicolas Cage como Superman em um filme dirigido por Tim Burton até a adaptação messiânica de Duna por Alejandro Jodorowsky (com Salvador Dalí no elenco). O problema é que aos poucos o que era especulação se tornou desinformação: fãs surgiam em fórum com supostas informações (sempre sem base factual) que cravavam a existência de uma versão do filme feita 100% por Snyder. Nascia o conceito do Snyder Cut, enlatado em algum galpão da Warner Bros. esperando para ser lançado.

De 2017 para cá, o Snyder Cut foi de teoria de fãs desmentida repetidamente por jornalistas (nunca houve uma versão finalizada diferente da que chegou aos cinemas, já que Whedon foi chamado justamente para finalizar o filme) para campanha conduzida pelo próprio Snyder, um grupo de fãs fervoroso e até os principais atores do filme nas redes sociais. Ainda assim, era difícil acreditar que essa película imaculada pudesse existir, até que a Warner anunciou: lançaria essa versão do diretor de Liga da Justiça para promover seu serviço de streaming, o HBO Max, em 2021. Mas como, exatamente, esse filme simplesmente surgiu pronto? A dúvida pairou por um tempo, mas enfim foi respondida: ele nunca esteve pronto.

Watchmen e Liga da Justiça: será que Snyder pretende usar Hallellujah em mais algum filme?

Segundo o norte-americano The Hollywood Reporter, a Warner Bros. investirá 70 milhões de dólares em filmagens de novas cenas (que podem ou não incluir o elenco original formado por Ben Affleck, Gal Gadot, Henry Cavill, Jason Momoa e mais astros) para que Zack Snyder possa realizar sua visão, quatro anos depois do lançamento de Liga da Justiça nos cinemas. Ou seja: o tal Snyder Cut nunca existiu; ele ainda está sendo feito.

Quando se fala em versão do diretor, quase sempre é sobre um filme que teve cenas cortadas e sua duração (ou até estrutura de atos) alterada pelo estúdio que o produziu, posteriormente tendo a versão apresentada pelo diretor para aprovação finalizada e lançada comercialmente. Nesse formato, pode haver custos adicionais envolvidos, claro, mas nunca algo que passe sequer perto de US$ 70 milhões (dinheiro o bastante para a produção de um filme médio). Só para se ter noção melhor de quanta grana está na mesa: Liga da Justiça chegou aos cinemas em 2017 com orçamento total (produção, divulgação e distribuição) estimado em torno dos US$ 350 milhões. E sequer conseguiu totalizar um bilhão de retorno nas bilheterias.

Agora, para ter essa versão alternativa, o filme (em suas duas vidas) ultrapassará com folga o custo de US$ 400 milhões, provavelmente figurando entre as produções mais caras da história do cinema – e se tratando de um relançamento exclusivo ao streaming, o home video do nosso século.

A verdade é que o papo de que sempre houve um Snyder Cut, e que ele sempre foi superior ao filme que chegou ao cinema em 2017, foi golpe. E golpe de mestre, ao menos para Zack Snyder. Com grana na mão, endosso da chefia e um tempinho a mais, o diretor pode se adequar às teorias descabidas que cresceram ao longo dos anos, mudando o que de fato era a sua visão para apelar aos caprichos de um grupo barulhento de fãs e se manter com um falso status de gênio visionário mesmo depois de repetidos fracassos artísticos (Batman vs. Superman, Watchmen e Sucker Punch são um sorvete napolitano de ruindade) o suficiente para sequer ser considerado um contador de histórias razoável.

Please follow and like us: