Há uma semana, iniciamos a publicação do Dossiê Mulher-Maravilha, um especial em dez posts contando a história da personagem que completou 80 anos de existência. Hoje, no quinto capítulo, abordaremos a polêmica “Era I-Ching”, que nos traz uma Mulher-Maravilha sem poderes, sem uniforme e, para muitos (como eu), sem graça.

No post de amanhã, abordaremos importância do seriado televisivo estrelado por Lynda Carter.

*****

“Eu declaro renunciar aos meus conhecimentos místicos! Eu me rebaixo no altar sagrado de glórias das amazonas e conscientemente condeno a mim mesma ao duro trabalho dos mortais. Que os deuses sejam misericordiosos comigo!”

(Mulher-Maravilha, ao abrir mão de sua cultura amazona e, por consequência, de seus poderes e seu título de princesa)

A Era de Bronze

Tendo como precursores os roteiristas (e depois editores) Roy Thomas e Dennis O’Neil, uma leva de autores “invadiu” as redações das grandes editoras de quadrinhos norte-americanos nos anos 70. Esses novos quadrinistas tinham um diferencial em relação à geração anterior: eram fãs.

Como descreve Roberto Guedes em seu livro “A Era de Bronze dos Super-Heróis”:

“Até então, com raríssimas exceções, os quadrinhos eram produzidos pelas pessoas que ‘inventaram’ o gênero, os mesmos profissionais dos anos 1940/50 que, por um motivo ou outro, não migraram para outras paragens, como a publicidade, a charge ou a animação.”

Essa Era de Bronze é normalmente demarcada como indo de 1970 a 1985, quando começa o processo de “desconstrução” do gênero de super-heróis. Três fatos importantes marcam esta época:

  • O surgimento, nos Estados Unidos, do mercado direto de revistas;
  • O uso de “graphic novels” e minisséries pelos autores de hqs de super-heróis;
  • A já citada chegada de autores que, antes de tudo, eram fãs dos personagens.

E o que fazem os fãs quando chegam “ao poder”? Querem contar as histórias do seu jeito. O início dos anos 70 foi marcado por reviravoltas na linha editorial dos principais personagens da DC. O Arqueiro Verde e o Lanterna Verde, por exemplo, passaram a dividir uma mesma revista, e suas histórias, apesar de fantasiosas como toda HQ de super-herói, passaram a apresentar problemas reais dos Estados Unidos: racismo, questão indígena, adolescentes viciados em drogas.

Batman, por sua vez, foi separado do Robin (que foi para a universidade) e passou a ter histórias mais sombrias, indo na contramão do escracho apresentado pelo seriado estrelado por Adam West e Burt Ward, que foi ao ar de 1966 a 1968 e que influenciaria na criação do seriado da Mulher-Maravilha (próximo capítulo). Nas histórias do Superman, Clark Kent saiu, pela primeira vez, do jornal “Planeta Diário”, tornando-se apresentador de televisão, e as histórias do personagem deixaram de ser tão grandiosas.

Mudanças, enfim. E a Mulher-Maravilha, nesta Era de Bronze, como ficou? Nem todas as mudanças vêm para o bem. Há algumas que têm como consequência descaracterizar e enfraquecer uma personagem.

Amazona nunca mais

Lançado em maio-junho de 1968, “Wonder Woman” nº 176 foi o último número com Robert Kanigher como editor. A edição seguinte, em que Jack Miller assume como editor, foi a primeira vez, em quase três décadas de personagem, que a Mulher-Maravilha dividiu a capa de sua revista com outro super-herói da editora – uma heroína, no caso, como não podia deixar de ser: Supergirl, a simpática prima do Superman.

E a famigerada Era I Ching começou para valer em “Wonder Woman” nº 178, com roteiro de Dennis O’Neil e arte de Mike Sekowsky. Em apenas duas páginas da edição nº 179, toda a mitologia dos 37 anos de MulherMaravilha simplesmente desaba.

Do nada, a rainha Hipólita (mãe da Mulher-Maravilha) chama sua filha para voltar às pressas para a Ilha Paraíso. Quando chega a seu lar, a Princesa é colocada em uma sinuca de bico. Sua mãe lhe diz:

“É meu dever requisitar sua decisão, Diana! Nosso tempo na Terra diminui! Por 10 mil anos nós vivemos aqui, desempenhando a missão que nos foi designada, ajudando a humanidade a encontrar a maturidade! Mas, agora, nossa magia está exausta! Nós devemos viajar para outra dimensão, descansar e renovar novos poderes! Estamos cansadas, Diana… As eras pairam pesadamente sobre nós! Você vem conosco?”

A pergunta vem no meio de uma crise no lado humano da Mulher-Maravilha. Steve Trevor, seu eterno amor, está sendo acusado de um crime que não cometeu. E Diana Prince, sua identidade secreta, está disposta a tudo para ajudá-lo. Inclusive a deixar todo seu legado de amazona para trás.

Assim, antes de a Ilha Paraíso, com todas as demais amazonas, ir para outra dimensão, a princesa Diana executa a cerimônia de renúncia e perde seus poderes e conhecimentos amazônicos, além de seu uniforme e do título de princesa. Resta-lhe, apenas, o seu lado Diana Prince.

Antes, ela era a Mulher-Maravilha, o ícone de super-heroína, de mulher poderosa. Agora, ela é Diana Prince, uma mulher como todas as outras. Deixa de ser uma super-heroína em todos os sentidos, inclusive deixando de conviver com seus colegas super-heróis: em fevereiro de 1969, ela abandona a Liga da Justiça.

Apresentando: I Ching

Uma mudança radical dessas (jogar fora toda uma fase da personagem) não seria feita sem uma nova fase planejada. Assim, duas páginas depois de ela se despedir da mãe e das amigas amazonas, Diana conhece o pequeno I Ching.

“Lembro por que eu o criei, mas Deus sabe que eu gostaria de ter lhe dado outro nome”, contou o criador Dennis O’Neil anos depois. “Eu não sabia que estava sendo paternalista para um livro que é venerado por uma cultura muito anterior à nossa. Tenho um grande respeito pelo ‘I Ching’ como um livro agora, mas na época havia uma moda hippie sobre ele.”

Descrito como um ancião chinês cego e sábio, I Ching solta frases feitas (“prudência é a mãe da sabedoria”, por exemplo), e se torna, tão abruptamente quanto o sumiço da Ilha Paraíso, o mentor de Diana.

Curiosa essa nova fase. Até então, a Mulher-Maravilha era uma mulher enviada ao mundo dos homens com a missão de ajudá-los a encontrar a maturidade. Agora, sem a bagagem cultural das amazonas por trás, Diana Prince se torna uma órfã perdida e desorientada, que vira pupila do, literalmente, primeiro homem que vê na sua frente, I Ching.

E os ensinamentos de I Ching são, basicamente, caratê, ioga e hipnose. Muito pouco se comparado a uma heroína que era quase tão forte quanto o Superman, mais inteligente que qualquer cientista humano, quase tão veloz quanto o Flash e que ainda podia aproveitar as correntes aéreas para planar.

Mas não é só isso que I Ching tem a ensinar. Ele se torna uma espécie de figura paterna de Diana, capaz de dar broncas severas como “Diana, pare! Você está se comportando como uma fera! Não há necessidade para violência!”.

Espiã, carateca e consumista

Se na Era de Prata (veja o post de ontem) houve o salto para uma MulherMaravilha mais alta, elegante e com um cabelo diferente, neste início da Era de Bronze ela se tornou menos “maravilha” e mais “mulher”.

A série de aventuras iniciada em “Wonder Woman” nº 178 corta o formato de histórias com início, meio e fim por edição e se torna uma série contínua, com um enredo longo em andamento e muitos enredos pequenos em paralelo.

O enredo longo é encontrar Steve Trevor e ajudá-lo a limpar seu nome perante a Justiça norte-americana. A isso somam-se a nova vida sem poderes ou uniforme, e um ritmo de aventura que a distancia do universo dos super-heróis e a transforma numa espécie de aventura de espionagem e artes marciais. Fazia relativo sentido, uma vez que Bruce Lee e James Bond estavam na moda. Relativo porque ela já era um ícone de um outro gênero, e poderia causar estranhamento uma mudança tão radical em sua linha editorial. Poderia… e causou.

Assim como todo livro (ou filme) de James Bond tem cenas em diversos lugares do mundo, a nova Diana Prince viajava de lá para cá pelo globo usando seus talentos de carateca e espiã, em busca de pistas para salvar seu amado Trevor. Ao seu lado, dois novos coadjuvantes: o já citado I Ching e Tim Trench, um detetive durão que chama sua pistola carinhosamente de “Lulu”.

I Ching e Trench se aliam: Diana porque, assim como Trevor, eles lutam contra o império do mal da poderosa doutora Cyber, um misto da fêmea fatal dos livros do 007 com os inimigos do mesmo agente. Possui uma base secreta embaixo do oceano, um império milionário de armas e soldados à disposição e, ainda por cima, é diabolicamente bonita.

Quando um novo homem entra em cena, o boa-pinta Reginald HydeWhite, o lado “mulher comum” de Diana destoa. Levada a fazer compras por Londres, diz se sentir “uma borboleta no primeiro dia de primavera”.

Diana Prince é uma mulher consumista: muito distante da humilde, discreta e recatada heroína que havia sido até então. Mais um lado da MulherMaravilha que fica para trás na nova fase de Diana Prince.

Outra mudança: com Reginald Hyde-White, Diana, pela primeira vez, tem olhos para outro homem que não Steve Trevor. Ao beijar Hyde-White – e sem essa de esperar o segundo encontro, foi no dia em que se conheceram – a ex-princesa ainda teve tempo para pensar: “Ohhh… O que está acontecendo comigo? Eu nunca me senti assim antes, mas…. Eu mal o conheço… Eu… Eu…”. E, pouco depois, ainda pensando consigo mesma: “Como uma princesa amazona… como Mulher-Maravilha… Eu tinha controle perfeito das minhas emoções! Plenamente Diana Prince, estou humana… humana demais!”.

Menos “maravilha”, mais “mulher humana”, definitivamente. Sem o uniforme, os poderes, a capacidade de servir de exemplo para as mulheres, o que sobrou da personagem nesta nova fase?

Repercussão

A fase “humana” não manteve Diana Prince completamente isolada de suas irmãs amazonas. Ela chegou a viajar, acompanhada pelo inseparável I Ching, à dimensão onde estavam as demais amazonas, e onde ela enfrentaria seu avô materno, Ares, o deus da guerra.

Afinal, não dava para desperdiçar toda a rica bagagem cultural da personagem. Era uma mudança radical demais… De 1941 a 1968, quando começou a fase I Ching, apenas duas pessoas haviam roteirizado as histórias da personagem: seu criador, Charles Moulton, e Robert Kanigher.

Da edição de setembro-outubro de 1968 ao número de janeiro-fevereiro de 1973, foram apenas 25 números, mas quatro escritores: Dennis O’Neil, Mike Sekowsky, Samuel R. Delany e, por fim, Robert Kanigher, que voltou para pôr ordem na casa: a partir de “Wonder Woman” nº 204, já com roteiro de Kanigher, Diana Prince recupera seus poderes e volta a usar seu antigo uniforme de Mulher-Maravilha; seu mentor, I Ching, morre; e as amazonas voltam a ser mais presentes.

Quando a DC completou 60 anos, foi lançado um belo livro comemorativo sobre a Mulher-Maravilha: “DC Comics – Sixty Years of the World’s Favorite Comic Book Heroes”. Esta fase da Mulher-Maravilha, por mais curta e criticada que tenha sido, não podia ficar de fora.

“Não tenho vergonha do que fiz”, conta o escritor O’Neil a Lee Daniels, autor do livro, “mas não tenho certeza do que faria de novo”.

Magazine with Wonder Woman on cover, “Ms.” Volume I, No. 1. 2015.0278.01.

A força da ativista feminista

Tantas mudanças resultaram até em um artigo na edição de lançamento da revista feminina “Ms.”, editada pela jornalista e ativista feminista Gloria Steinem. No alto da capa, à direita, uma chamada para um artigo sobre Simone de Beauvoir. O artigo sobre a MulherMaravilha não teve direito a uma chamada na capa, mas à capa praticamente inteira. “Ms.” chegou às revistarias com a seguinte manchete: “Mulher-Maravilha para presidente”, com uma imagem da personagem em proporções gigantescas, caminhando por uma cidade sendo atacada por um exército inimigo.

Esse artigo teve forte peso na decisão que os editores da DC executariam na primeira edição de 1973, de reverter a Mulher-Maravilha ao seu contexto original, com direito a uniforme, poderes e Ilha Paraíso.

Mais de duas décadas depois desta sua primeira interferência na vida da personagem, Steinem relembrou o fato ao escrever a introdução do livro de bolso “Wonder Woman – Featuring Over Five Decades of Great Covers”, que reunia 300 das melhores capas das então mais de cinco décadas de existência da revista:

“Foi neste estado triste [ela refere-se à Era I Ching] que eu reencontrei minha super-heroína amazona em 1972. A revista ‘Ms.’ tinha recém começado, e nós estávamos procurando por uma história de capa para seu primeiro número regular, que sairia em julho. Uma vez que Joanne Edgar e outros editores fundadores também haviam sido resgatados pela Mulher-Maravilha em suas infâncias, decidimos resgatar a Mulher-Maravilha em retribuição. Embora não tenha sido fácil persuadir seus editores a nos deixar pôr sua imagem original na capa de uma nova e desconhecida revista feminista, ou reimprimir episódios da sua era de ouro dos anos 40 dentro, nós finalmente conseguimos. A Mulher-Maravilha apareceu nas bancas em toda a sua glória original, caminhando vigorosamente através das ruas da cidade como um colosso, parando aviões e bombas com uma mão e resgatando edifícios com a outra.”

A conclusão da sua intervenção viria algum tempo depois:

“Um dia, alguns meses depois do seu renascimento, recebi uma ligação de um dos escritores mais durões da Mulher-Maravilha. ‘Ok’, ele disse, ‘ela tem todos os seus poderes amazônicos de volta. Ela conversa com as amazonas na Ilha Paraíso. Ela tem até mesmo uma irmã negra amazona chamada Núbia. Agora, vocês vão nos deixar em paz?’. Eu disse a ele que iríamos.”

Essa foi a primeira grande intervenção no mundo da personagem vinda de fora dos quadrinhos. A segunda, e mais importante, viria poucos anos depois, na forma de um seriado de TV. Decisões editoriais equivocadas podem diminuir uma personagem; uma produção televisiva como aquela que viria poderia redimi-la.

Please follow and like us:

Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

Quer falar comigo, mas não pelos comentários do post? OK! Meu e-mail é pedrocirne@gmail.com

LinkedIn: https://br.linkedin.com/in/pedro-cirne-563a98169