Há exatamente sete dias, sua timeline (em qualquer rede social) viu pipocarem máscaras brancas com um sorriso congelado: trata-se do personagem “V”, criado por Alan Moore e David Lloyd em uma história que remete ao revolucionário britânico Guy Fawkes.

(Aliás, na única festa a fantasia em que fui já adulto, fui de V. Mas estávamos em 1995, e ninguém conhecia o personagem. Só me acharam estranho.)

Se você leu a magistral obra de Moore e Lloyd sabe por que a selecionei para abrir o texto de hoje. Afinal, faltam poucos dias para o primeiro turno da nossa eleição. Ontem, apresentei uma lista de HQs de não-ficção que abordam a democracia – da sua origem até a eleição de Donald Trump. Hoje, é a vez de histórias ficcionais… e que histórias!

Os três quadrinhos que separei têm origens diferentes: um inglês, um argentino e um francês. São distopias que refletem sobre a democracia por meio da falta dela. Boa leitura (e bom voto, antes que eu me esqueça).

V de Vingança“, de Alan Moore e David Lloyd

Sabe aquele cara que brada “eu já era fã disso daí antes de virar modinha!”? Que fica incomodado quando um personagem do qual gosta bastante cai no gosto popular? Então, não sou um deles. Gosto de ver a máscara de V em manifestações, na minha timeline, onde quer que seja. Gostei do filme. E recomendo a graphic novel mesmo para quem prefere prosa aos quadrinhos.

“V de Vingança” se passa em um futuro em que a Inglaterra virou uma ditadura. Negros, gays, comunistas e demais minorias foram enviados a campos de concentração. Os sortudos morreram. Os azarados viraram alvo de “experiências científicas”. Neste mundo lamentável, um homem que escapou dessas torturas resolve tentar abalar o governo: V.

Quem é o ser humano embaixo da máscara? Gay, negro, comunista, judeu, todas as anteriores? Que importa? V se coloca como uma ideia. Sua força está nas suas palavras, magnificamente escritas por Alan Moore – um dos maiores escritores do mundo, na minha humilde opinião.

Terrivelmente atual. Recomendo.

O Eternauta“, de Héctor G. Oesterheld e Alberto Breccia

Poderosos e bem armados, eles vieram e acabaram com a nossa democracia. Foi surpreendente e rápido, da noite para o dia. Somos civis não treinados, como poderíamos confrontá-los? Seus veículos são grandes e fortes, suas armas são mortais. Quando tentamos descobrir o que estava acontecendo, só piorava: eles eram apenas braços de uma organização militar bem maior e aparentemente invencível.

Este é o resumo que fiz da magnífica série “O Eternauta” no meu texto sobre Oesterheld – para mim, um dos maiores quadrinistas do século 20. É uma ficção científica maravilhosa que funciona como alegoria política da sociedade em que foi escrita – a violenta ditadura militar argentina. Uma obra-prima.

De 1976 a 78, a monstruosa ditadura argentina sequestrou e matou Oesterheld, suas quatro filhas (duas delas estavam grávidas) e dois de seus genros. O corpo de Oesterheld nunca foi encontrado.

O Perfuraneve“, de Jacques Lob, Jean-Marc Rochette e Benjamin Legrand

Confesso que não gosto do título: “perfura-neve” não me diz nada. Parece apelido de jogador de futebol na Sibéria. Mas o conceito é bárbaro!

Em um futuro distópico, o planeta Terra congelou. Poucos seres humanos sobreviveram, a bordo de um trem autossustentável que circula para sempre. Os mais ricos estão na primeira classe, com comida e bebida abundantes, quartos luxuosos e serviçais. Mas há a segunda classe, a terceira classe… E os que estão nos fundos do trem, sem direito a quase nada – não conseguem ver nem mesmo a luz do Sol. Consegue perceber a tensão social que brota aí?

Esse universo incrível migrou com originalidade para mídias diferentes: cinema e TV. Quando digo “com originalidade”, é porque não são adaptações, mas histórias novas criadas dentro do mesmo universo:

  • São seis graphic novels: “Le Transperceneige”, de 1984; “L’Arpenteur”, de 99; “La Traversée”, de 2000; “Terminus”, de 2015; “Extinctions Acte I”, de 2019; e “Extinctions Acte II”, de 2020. A edição brasileira traz as três primeiras histórias;
  • “Snowpiercer”, filme lançado em 2013 pelo sul-coreano Bong Joon-ho (de “Parasita”);
  • “Expresso do Amanhã”, série de TV cuja primeira temporada saiu este ano (sim, tem no Netflix) e a próxima sai em 2021.
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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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