Em 2015, uma notícia me atraiu: um alemão, estudante de design, criou uma história em quadrinhos para ser lida por cegos. Peguei o nome dele, Philipp Meyer, e dois segundos depois já havia enviado um e-mail dando parabéns pelo projeto e dizendo que estava interessado em comprar um exemplar, se possível. Será que ele me responderia?

Sim, Meyer me respondeu no dia seguinte. Simpático, agradeceu o apoio, mas lamentou que não tinha exemplares para vender. Fez poucos e os distribuiu para parentes e amigos. Achei uma pena não ter um na minha coleção, mas fiquei muito feliz ao saber que alguém estava pensando em levar histórias em quadrinhos para cegos.

Fim do post, vamos para o próximo texto.

Não! Cerca de seis semanas depois, Meyer me escreveu. Havia feito alguns exemplares e ia me vender um. Achei o preço interessante: “Geralmente, deixo que decidam quanto querem pagar pela HQ”. No fim, paguei € 10 euros.

O pacote chegou no mês seguinte. Uma edição fina, linda, toda branca. Na capa, em relevo, a mesma mensagem está escrita em braile e em inglês:

“Vida

Cada página contém quatro quadros. Em cada um, uma situação é representada. Números nos quatro primeiros quadros [do livro] indicam a sequência correta de leitura.

Philipp Meyer

Maio, 2013”

Meyer já havia mencionado algo interessante no seu site: quem era cego de nascença talvez não soubesse a ordem correta de leitura. E foi assim que, didaticamente, ele a explicou.

Dentro de “Life”, não há mais palavras. Gostaria que você pegasse meu exemplar na mão e sentisse por si mesmo(a) – é muito mais emocionante.  Mas vou tentar explicar: os requadros (linhas que formam os quadros) e os personagens são todos em relevo. É pela textura que você os sente.

Fui checar o site dele e descobri que há um link para a compra de “Life” (“Vida”, esse é o nome da HQ). Não sei se ainda é válido, mas você pode tentar por aqui.

Não sei se você vai querer comprar “Life”, então vou contar a história. Espero que você não se importe.

Página 1: a personagem principal nasce. Ela é uma bolinha toda preenchida e bem pequena. É um homem ou uma mulher? Não importa. Representa uma pessoa. Vou chamar de 1.

De um quadro para outro, ela (ou ele) cresce, até virar uma bola grande (adulta).

No final da página, conhece outra bola, diferente dela: tem o mesmo tamanho, mas só o contorno está em alto-relevo. Vou chamar a segunda bola de 2.

Página 2: Eis que 1 e 2 se aproximam, mas timidamente. No final do último quadro, estão nitidamente próximos. Viraram um casal.

Página 3: O casal se mescla momentaneamente. Depois, nasce uma bolinha pequena, que é preenchida pela metade, mas sem alto-relevo na outra metade. Ou seja: puxou, ao mesmo tempo, pai e mãe.

A nova bolinha cresce. Vou chamá-la de 12, já que parece tanto com 1 quanto com 2.

Página 4: 12 já está do tamanho dos pais: virou adultx. E, aos poucos, vai se distanciando deles. Foi viver a própria vida.

Página 5: 2 começa a desaparecer aos poucos. Estará doente? No último quadro, não existe mais. 2 morreu.

Página 6: 1 começa a desaparecer aos poucos. Estará doente? No último quadro, não existe mais. 1 morreu.

E assim acaba “Vida”.

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

Quer falar comigo, mas não pelos comentários do post? OK! Meu e-mail é pedrocirne@gmail.com

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