Estamos entrando na semana do Halloween, em que bruxas, fantasmas e sacis estão à solta. Então, resolvi publicar uma entrevista com alguém que entenda do assunto: a pernambucana Roberta Cirne, escritora e quadrinista que ama consumir e criar histórias de terror.

Eu sou Cirne, ela também. Mas não sabemos se somos parentes. Como ela é simpática, talentosa e gosta de histórias em quadrinhos, torço para que sim e a chamo de prima. É um daqueles casos em que se os fatos estão contra mim, azar dos fatos.

Pedi que ela sugerisse cinco bons quadrinhos nacionais de terror – como fã do gênero, ela indicou nada menos do que dez (sendo três estrangeiros). Estão todos devidamente sinalizados no corpo da entrevista e com links para livrarias virtuais.

Nessa entrevista, ela vai além das dicas e fala de sua carreira e dos (muitos) projetos atuais.

Por favor, conte um pouco sobre você. Onde nasceu e cresceu, em que trabalha… Como você começou a ler quadrinhos? Que obras, personagens ou autores te interessavam?

Nasci e cresci em Recife- Pernambuco. Tenho formação em Licenciatura em Artes Plásticas, mas atualmente sou, com orgulho, quadrinista (roteiro e arte), contista e escritora.

Creio que, como todo mundo, comecei como leitora e avancei nas primeiras letras com quadrinhos. Aprendi a ler muito cedo, antes dos cinco anos, e pulei a alfabetização.

Eu sempre adorei desenhar. Na minha casa, ninguém era artista, com exceção de uma tia por parte de pai. O nome dela era Alba, e costumava fazer bonequinhas de papel desenhadas para mim. Com o tempo, eu mesma comecei a desenhar minhas próprias bonequinhas e descobri sozinha, por observação, como projetar em perspectiva, usando distâncias de objetos. Mas foi esta minha tia, que admirei por toda a vida, que me mostrou os primeiros passos nas artes.

Assim que comecei a demonstrar interesse pela arte, meus pais deram muito apoio. Incentivavam, davam materiais de arte para mim. As minhas melhores lembranças são as de receber, todo Natal, livros (sempre adorei ler), caixas de lápis de 48 cores da faber-castell e papéis para desenho.

Quadrinhos, eu colecionava. Era fã das revistas da Luluzinha e do Bolinha, mas também adorava ler Almanaques Disney, principalmente as sagas da família Pato, de Carl Barks. Tio Patinhas, os sobrinhos e as histórias no Klondike e na Escócia me faziam viajar na aventura.

O que te atraiu no gênero do terror? Literatura, cinema, seriado, HQs… Tudo isso? Se sim, você lembra que obras mais te marcaram?

Começou com filmes e séries. Eu adorava uma série de terror antiga, a “Galeria do Terror”, onde as histórias eram contadas a partir de quadros de uma galeria de arte. Assistia escondido da minha mãe, e desenhava as histórias em livrinhos que eu bolava. Minhas primeiras leituras de terror foram escondidas, e comecei logo por Stephen King, “Christine”. Daí foi toda a série dele, de Anne Rice, Frankenstein, Drácula, os livros de Hitchcock, poesias góticas e Edgar Alan Poe, mas também livros de literatura em geral.

O mercado de quadrinhos sempre foi predominantemente masculino, então comecei pelo que eu gostava de ler: como na época só tinha acesso aos “formatinhos” da editora Abril, li muito X-Men. As histórias de Chris Claremont ilustradas por Marc Silvestri me marcaram bastante, e quando comecei a fazer uma série de HQS com uma amiga, usava como modelo a seguir. Logo depois, me encantei com Alex Rosse (“Marvels”) e comecei a pintar em aquarela.

Um dos grandes problemas, em minha opinião, é que os quadrinhos no Brasil antes da internet eram bastante setorizados. Havia quadrinhos para meninas até certa idade, depois apenas super-heróis, o que focava no público adolescente masculino. Tive a sorte de minha mãe me apresentar aos heróis que ela costumava ler, como Mandrake e Fantasma, e, depois, ela comprava para mim umas edições de encalhe da editora Ebal – Superman, Batman e outros. Li muito X-Men, como já disse.

Em 1992, eu fazia HQs baseadas no RPG “Vampiro, A Máscara”, dos personagens que jogava em grupo de amigos. E também possuía, junto com outra amiga, um grupo de heróis de um universo distópico. Mas estas HQS eram apenas para nós mesmas e mais algumas pessoas que liam de “cobaias”.

Não havia então nenhuma publicação de HQs femininas ou com temáticas femininas. No Japão, há muito tempo já tínhamos as mangaká mulheres e, na Europa, quadrinistas mulheres faziam parte do cenário franco-belga. Mas nada chegava de forma distribuída aqui.

A falta de quadrinhos ditos “para garotas” de mais idade deixava de cultivar o hábito de leitura de HQs na maioria das meninas. Então, demorou bastante para que as (poucas) leitoras de HQs de heróis começassem a produzir suas HQs.

Atualmente leio ainda os clássicos, revendo “Sandman”, trabalhos roteirizados por Alan Moore. Me influencio muito na ideia de metaquadrinho de Will Eisner e adoro fazer molduras que dialogam com o quadrinho. Acho que estas molduras são quase uma marca registrada de minhas HQs.

Quando você decidiu que ia começar a criar quadrinhos? Quais foram seus primeiros movimentos nessa direção? Até agora, o que foi mais difícil para você, enquanto quadrinista? E o que foi mais satisfatório?

Eu mesma fazia minhas histórias em quadrinhos. Lembro que criei, aos 7 anos, uma HQ de uma menina que tinha uma boneca que ganhava vida. Fora isso, eu “quadrinizei” filmes que gostei, antes dos 10 anos. Tenho até hoje a HQ de Annie e de Peter Pan que fiz.

Entrei em crise várias vezes. Desenhar era “bonitinho” quando criança, mas se tornava um “hobby” pouco rentável, segundo meus pais, para ter quando adulta. Tentei seguir o caminho da advocacia, mas terminei trocando o curso de Direito na UFPE pelo de artes plásticas (meu pai quase teve um treco!). Fazer quadrinhos era algo meio sofrido, por amor mesmo. Não dava dinheiro, a princípio. Fazia vários bicos e estágios na faculdade, principalmente porque casei e engravidei em seguida. Nosso núcleo familiar se formou neste redemoinho.

Dentro de um coletivo de quadrinhos, um grupo de amigos e eu lançamos o álbum “Passos Perdidos, História Desenhada” em 2006, pela Sinagoga do Recife. Ganhamos o prêmio HQ MIX de 2007 de maior contribuição para os quadrinhos nacionais.

Fizemos juntos mais seis álbuns pelo MINC e FUNDARPE, mas nenhum deles era roteirizado por mim. Tinha certa liberdade em criar as artes, mas queria mais. Os projetos culturais davam algum dinheiro, na época. Para sustentar a vida de forma regular, me formei como arte-educadora e dava aulas. Todo o conjunto das coisas não era o que eu queria fazer, na verdade. Queria ser dona de meu próprio projeto, e pesquisava sobre Recife desde 1998. Queria algo que me representasse mais.

Abandonei as HQs em 2010, para cuidar de meus pais nos seus últimos anos. Não me arrependo disso, pois esta parada me fez repensar muita coisa. Em 2015, voltei às HQs. A princípio, produzindo aos poucos, para mim mesma, e depois aumentando a produtividade.

Atualmente, não mais leciono. Posso me manter, e me dedico 100% aos quadrinhos. São os meus quadrinhos, feitos exatamente do jeito que sempre quis. A internet teve este poder em minha carreira.

Atualmente tento dividir o tempo entre collabs, editoras e os projetos autorais focados no folclore regional e nacional.

O mais difícil para mim é resolver a equação de “viver de arte”. Seria perfeito se o conseguisse… E o mais satisfatório foi perceber o quanto consegui atingir as pessoas através da internet, os amigos que fiz, alguns artistas que falaram ter se inspirado em meu trabalho, etc. Saber que consigo fazer a diferença, apesar das dificuldades.

Hoje, o que você consome de terror?

Séries e filmes (“Lovecraft Country” foi a última, e grata surpresa, excelente), os quadrinhos mais para estudo de arte-final e traço (o tempo fica muito curto para aproveitar a leitura mais, infelizmente). Estou sempre assistindo aos filmes recentes. Destaco, entre eles, “Midsummar”, e um bem obscuro da Amazon Prime, “Nocturne”. 

Nos livros estou dando um tempo por conta do trabalho que não para. Me dedicando 100% ao desenho das HQS e nos dois livros de contos que lançarei, um sobre as assombrações de Recife e Pernambuco e um sobre crimes famosos, o “Pernambuco Sangrento”.

Estamos na semana de Halloween. Você pode indicar ao leitor do Hábito de Quadrinhos cinco boas HQs nacionais de terror?

Vou puxar um pouco abrasa para a minha sardinha (risos).  Bem, por fora indico “Sombras do Recife em quadrinhos, e os dois “Gibi de Menininha”, tanto o volume 1 quanto o número 2. São obras premiadas e acho que cabem aqui.

 Das obras que estou lendo atualmente recomendo “VHS”, coletânea de muita gente boa do quadrinho de terror nacional; “Fronteiras Do Além”, de Jayme Cortez e da editora  Pipoca e Nanquim; os quadrinhos de Marcel Bartholo, como “Canil”; a coletânea “Maldito Sertão”, feita por artistas do Rio Grande do Norte e baseada na obra do escritor Márcio Benjamin, excelente.

Gostaria de indicar três extraordinárias e internacionais: “Minha Coisa Favorita é Monstro” de Emil Ferris; “Monstros Noturnos” de Bernie Wrightson; e “Os Mitos de Cthulhu”, de Esteban Maroto.

Quais são seus projetos atuais?

Atualmente estou com muita coisa:

  • HQ de terror para a editora Draco (mas ainda não posso falar…);
  • “Gibi de Menininha Apresenta: Dóris” (edição one shot), a sair a partir de fevereiro;
  • “Isto É Coisa de Mulher”, coletânea que vai entrar no Catarse em novembro de 2020 para ser lançado em 8 de março de 2021;
  • segundo volume de “O Rancho do Corvo Dourado”, que será numa pegada ciberpunk + Monteiro Lobato;
  • Autoral, estou desenhando a versão em quadrinhos do primeiro livro de literatura fantástica de terror pernambucano, lançado por Carneiro Vilela em 1871: “O Esqueleto em Quadrinhos”, que lançarei no Catarse em novembro; o pdf da primeira parte na CCXP; e impresso em 2021;
  • Para terminara, já estou com 15 páginas desenhadas de um álbum de 60, em aquarela, sobre o Papa Figo (“Das Tripas, Coração”), que provavelmente lançarei na ccxp 2021. Espero conseguir concluir tudo até então!

Para encerrar, aqui vão os contatos da Roberta:

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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