Alan Moore, o bruxo e mestre (aposentado) dos quadrinhos é notavelmente contra adaptações das obras dele (e, aparentemente, de qualquer outra pessoa) de uma mídia escrita para o cinema ou a TV. O motivo é simples: a falta de criatividade explícita em se apropriar de algo pensado para outra mídia e refazer tudo num formato mais lucrativo. Mas quem sabe em uma realidade alternativa, onde Moore fosse um pouco mais flexível, ele não conseguiria contemplar algumas exceções à regra. Quem sabe, nesse mundo alternativo, ele não se descobriria um fã de The Boys.

A série do Amazon Prime Video é uma rara adaptação que não só melhora o material-fonte, como o ultrapassa tão largamente em termos de qualidade que se torna a única versão possível. A partir do que criaram Garth Ennis e Darick Robertson, a produção de Eric Kripke, Seth Rogen e Evan Goldberg adiciona mais e mais camadas de profundidade e, principalmente, humanidade, para criar uma narrativa fantástica que fala diretamente sobre a nossa sociedade, ao mesmo tempo que expõe os ridículos das histórias de super-heróis em tom ácido, mas reflexivo.

Se eu chamaria a série de genial? Ainda não. Mas ela justifica receber grandes e poderosos elogios porque The Boys, nos quadrinhos, é uma narrativa bastante fraca e deficiente de impacto emocional que não o puro e simples choque. Por mais devassa e ousada que seja, a história que Ennis conta em sua obra máxima, Preacher, está repleta de humanidade, ecoando entre os personagens dela. Já quando criou The Boys, o autor estava mais preocupado em vender transgressão, resultando em uma história sádica, cínica e desoladora, mas ultimamente banal.

Na série de TV, entretanto, essa mesma narrativa renasce inicialmente em um tom muito parecido com o dos quadrinhos de Ennis, deixando claro o respeito pelo trabalho ali contido, mas mais e mais se afasta da unidimensionalidade contida nas páginas para buscar o lado mais humano da história contada. Algumas (poucas) vezes ela desliza para a pieguice, mas quando funciona, é excelente, porque cria conexões emocionais com o público que elevam os riscos e as provações colocadas na trama. E que bom que parece haver mais amor entre autores e personagens na versão da TV.

É aí que entra a segunda temporada da série, encerrada nesta quinta-feira (08). Se o primeiro ano serviu para apresentar o conceito de um grupo paramilitar caçando super-heróis psicóticos e dissimulados, e deixar o público querendo mais, o segundo foi dedicado a concluir arcos e abrir portas intrigantes para o futuro. Mais do que isso, aponta um caminho que é similar ao que vemos nos quadrinhos (mas sem spoilers por aqui), ao mesmo tempo em que é distante o bastante para dar total liberdade à produção para criar. Empolga!

Caso você ainda não saiba, The Boys é um título homônimo ao núcleo principal da história, um grupo dedicado ao monitoramente, rastreamento e à caça de super-heróis que saiam da linha. Por motivos pessoais ou ordem do governo, eles batem de frente com o supergrupo mais poderoso do mundo, Os Sete, mantido por uma organização internacional chamada Vought. Paralelamente, uma heroína jovem, religiosa e idealista entra para essa versão alternativa da Liga da Justiça, encarando a realidade: nos bastidores, super-herós podem ser pessoas horríveis.

Essa premissa era, basicamente, o que dava o tom de toda a primeira temporada da série, culminando em um final desnorteador que indicava um caminho mais intimista aos conflitos do segundo ano: dito e feito. Numa segunda temporada mais cerebral, o líder dos The Boys, William Butcher, é desconstruído ao mesmo tempo que o Capitão Pátria (Antony Starr), o execrável super-humano que lidera Os Sete, é aprofundado. O resultado é que ambos terminam esse ciclo na história mais próximos; mais humanos.

Quem conduz a maior parte da temporada, entretanto, são as mulheres. A série cria inclusive uma sátira para a apropriação comercial de grandes indústrias sobre causas sociais, nesse caso com ênfase no feminismo, mas incluindo em vários momentos a diversidade racial. Luz-Estrela (Erin Moriarty), a jovem heroína idealista, cresce e aparece; Rainha Maeve, a versão d’Os Sete da Mulher-Maravilha, mostra todos os tons de humanidade possíveis, inclusive os positivos (o que é uma surpresa); a novata Tempesta (Aya Cash) conduz a parte mais temporal (sem trocadilho) da trama, discutindo pós-verdade, manipulação de massas e nazifascismo no século XXI; a misteriosa Kimiko (Karin Fukuhara) tem seu passado revelado e enfrenta o maior desafio da vida dela, até agora.

Os Sete, com Tempesta: ela é destaque na segunda temporada

Com um roteiro que conscientemente abre mão de sutilezas e um elenco monstruoso (o que Karl Urban e Antony Starr fazem nessa segunda temporada é digno de prêmio), The Boys consegue equilibrar muito bem o que é tiração de onde com coisa de nerd, em especial com as convenções narrativas próprias dos quadrinhos de super-heróis; o que é sátira social, discutindo e esfregando na cara do público temas urgentes nos EUA e no mundo, como violência racial, discurso de ódio, o poder destrutivo das redes sociais, corporativismo predatório e por aí vai; o que cada personagem pede para evoluir, crescer e, a despeito até de ter protagonizado atos horríveis, ganhar mais amor e despertar mais vínculos emocionais com o público.

O ponto mais fraco de tudo talvez esteja, ironicamente, no protagonista da série de TV: Hugh Campbell (Jack Quaid). Ele é o homem comum, um cara que teve a namorada morta por um super-herói e se encontra no meio de uma batalha épica que é muita areia para o caminhão dele. Só que o constante idealismo e a pouca movimentação no que diz respeito ao arco pessoal do personagem cansam. Ainda assim, funciona, justamente por ele ser o único entre tantos outros que é mais simples e claro em suas motivações e ações.

No final das contas, The Boys está muito à frente de sua contraparte escrita porque consegue incorporar o entretenimento proporcionado pelo exagero de violência, cinismo e sadismo irônicos, ao mesmo tempo em que tem coração, idealismo, esperança. Talvez mais louvável de tudo, tem mensagens que precisam ser transmitidas, quando não esfregadas na cara, a muita gente. Sem sutileza alguma, mesmo. Exemplo: dar porrada em lixo nazista. Algo que até o Alan Moore do nosso mundo apreciaria, com certeza.

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