A editora Pipoca & Nanquim anunciou na semana passada que vai relançar “Adolf, inédita no Brasil há mais de uma década. Trata-se de uma excelente obra em cinco volumes de Osamu Tezuka, o mais importante mangaká de todos os tempos. (Explico aqui o tamanho dele para os quadrinhos japoneses – e mundiais.)

Tezuka se notabilizou inicialmente por obras voltadas para o público infantil. Foi assim que surgiram, por exemplo, “Astro Boy” e “A Princesa e o Cavaleiro”. Na fase final da carreira, entretanto, começou a pensar mais nos adultos. É nessa fase que vieram, entre outros, o drama “Ayako” e este “Adolf”, lançado originalmente em capítulos de 1983 a 85.

A série ganhou o Kodansha Award de melhor mangá – o Japão tem dois “Oscar” para seus quadrinhos, e este é um deles.

“Adolf” tem, claro, muito do trabalho pregresso de Tezuka. O traço é bastante estilizado, como lhe é característico. O que muda é a abordagem, especialmente no roteiro. Saem de cena as piadinhas frequentes e leves. Afinal, os temas “nazismo”, “genocídio” e “preconceito” são delicados demais.

A sequência que abre o primeiro volume já mostra a que veio: um homem visita um cemitério. A narração avisa: “Esta é a história de três homens chamados Adolf”. Há dois quadros de silêncio para contemplação do fúnebre local. E o narrador complementa: “Cada um deles trilhou um caminho diferente…”

Pronto, está dada a largada. A história se passa nos anos 30, e os protagonistas são dois jovens amigos alemães. Um deles é judeu e o outro, não.

O terceiro Adolf, obviamente, é Hitler. A série começa em 1936, quando ele já estava no poder, e a Alemanha recebia os Jogos Olímpicos de Berlim.

O pano de fundo apresenta Hitler conduzindo a Alemanha (e o mundo) para uma desumana, insana e inacreditável guerra. Agora ex-amigos, os dois Adolfs são colocados em lados opostos da disputa nesta obra.

Uma frase atribuída a Ésquilo afirma que “na guerra, a primeira vítima é a verdade”. Iniciada por Hitler e seus asseclas, a Segunda Guerra já nasceu calcada nas mentiras de que uma “raça” seria “superior” a outra. É previsível que, quando alguém pensa assim, a humanidade dessa pessoa já é a segunda vítima da guerra. E de seus atos atrozes surgirão as próximas vítimas.

Tezuka não procura “beleza” ou “arte” na guerra. Primeiro, antes de ela estourar, o mangaká coloca mistérios, ação e uma ótima construção de personagens. Depois, quando as nações já estão em conflito, aparecem o inevitável: a monstruosidade, a dor, os crimes contra a Humanidade. Não há escapismo.

Ao mostrar personagens dos dois lados, Tezuka convida o leitor a várias reflexões. O inferno da Segunda Guerra poderia ter sido evitado? A ascensão de um fascista mentiroso e populista não acendeu alertas na sociedade democrática? O patriotismo pode cegar?

Em que momento o fanatismo leva uma pessoa a deixar a inteligência de lado para agir de acordo com violência, mentiras e imbecilidade?

Como se abraça uma ideologia que obrigatoriamente te faz abrir mão da sua humanidade?

Como a maioria de uma nação pode fechar os olhos para a realidade e aderir a um monstro?

Sim, “Adolf” continua atual.

Lendo, diariamente, os jornais, tenho a sensação de que uma releitura de “Adolf”, ao lado de livros densos como “O Povo Contra a Democracia”, de Yascha Mounk, “Como as Democracias Morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, tendem a nos fazer bem.

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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