No início de 1995, a linda série de fantasia “Sandman” ainda estava sendo publicada nos Estados Unidos e no Brasil. Seu criador, o roteirista Neil Gaiman, veio a São Paulo dar uma palestra no Sesc Pompeia. E eu, garoto estranho acostumado a jamais ter com quem conversar sobre quadrinhos, fui lá.

Lembro de estar muito tranquilo. Afinal, quantas pessoas será que conheciam aquela obra? E quantas gostariam a ponto de irem até lá e ver o tal do Gaiman falar? Cheguei uns 15 minutos antes de começar. E o local estava terrivelmente lotado.

Não havia lugar para ficar sentado.

Não havia lugar para ficar em pé.

Fiquei espremido no corredor, em pé mas na diagonal, sendo empurrado por todo mundo que chegava e descobria que não havia onde ficar.

Olhei ao redor e vi um padrão: todos vestiam preto. Olhei para mim: camiseta preta de banda de rock, jeans preto. Eu pertencia a um “clã” e não sabia.

Minha memória é horrível, mas eu decorei a palestra inteira do Gaiman. Aí vai:

“Olá. Meu nome é Neil Gaiman, sou do sexo masculino e estou vestindo preto. Perguntas?”

Sério, foi isso mesmo. E aí começaram as perguntas. Homem educado e gentil, Gaiman respondeu a todas por horas.

Algumas questões foram feitas em português, outras em inglês. Um número considerável de perguntas foi feito por pessoas que não falavam inglês, mas achavam que falavam. Percebia-se algumas sílabas desconexas que talvez formassem palavras, mas não era possível ter muita certeza disso. E Gaiman respondia mesmo assim. Talvez ele tentasse adivinhar o que o cidadão estava falando, ou simplesmente inventasse…

Eu era jovem e já sabia que gostava de escrever. Então, o que retive daquele dia delicioso (ainda que apertado e desconfortável) foram duas lições de Gaiman:

1º – Escreva sempre. Tire um período do seu dia e o transforme em um momento sagrado. Escreva. Mesmo que seja para jogar fora no dia seguinte. Mas escreva.

2º – É normal acharem que para escrever basta ter uma ideia. Pessoas vêm até mim e dizem “Tive uma sacada incrível, vamos fazer assim? Eu te dou a ideia, você escreve e dividimos os créditos e os lucros em 50%, o que acha?”. E não é nada disso. A transpiração é tão ou mais importante do que a inspiração.

Gaiman não deu números exatos, mas saí da palestra com a impressão de que escrever envolve 55% de inspiração e 75% de transpiração – e se a soma passa de 100%, mal aí.

Neil Gaiman!

Neil Gaiman criou a série “Sandman” e outras obras maravilhosas, como “Violent Cases”. Ele sabe do que está falando. Se Gaiman considera que essas duas questões são importantes, eu levo a sério e as tento implementar. Até hoje.

ps – Achei que havia aprendido a chegar mais cedo nos eventos com artistas dos quais eu gosto, mas quando Gaiman voltou ao Brasil alguns anos depois e foi dar autógrafos na livraria Fnac, em Pinheiros, cheguei só algumas poucas horas mais cedo. Ele estaria no último andar, e a fila já saía da loja.

Errar é humano; repetir o erro é…

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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