Quando eu era criança, só conhecia três formatos para histórias em quadrinhos: tiras em jornais, revistas (o popular “gibizinho”) e livros.

Hoje, felizmente, conheço outros formatos, maneiras até inusitadas de “empacotar” as histórias –  e não me refiro a webcomix, que fica para outro dia.

Enquanto algumas dessas inovações são “apenas” divertidas, outras têm a ver com o conteúdo, o que faz com que a ousadia do artista a torne ainda mais interessante.

Selecionei algumas delas, começando com… um papel-higiênico.

1 – O mangá impresso em papel-higiênico

Osamu Tezuka é ora tido como pai do mangá, ora como deus do mangá… De qualquer maneira, é merecidamente reconhecido como um dos maiores nomes da arte japonesa de todos os tempos.

Há um museu dedicado a ele em sua cidade natal, Takarazuka, um município japonês de 220 mil habitantes que fica a 400 quilômetros de Tóquio.

Na lojinha, encontrei uma surpresa: um mangá em forma de papel-higiênico. Os funcionários me falaram que o Museu Osamu Tezuka é o único lugar do mundo em que ele está à venda – infelizmente, não há edições em português ou inglês. Pensei em comprar dois: um para guardar e outro para ler. Lembrei que não falo japonês e adquiri um só.

Trata-se de uma história de Black Jack, o personagem médico de Tezuka (também ele formado em medicina). O formato não tem a ver com a história, mas e daí? É para lá de inusitado.

Sentimentos conflitantes ao ver um Tezuka em papel-higiênico

2 – A historieta que veio como brinde em um álbum de figurinhas de futebol

A Argentina tem um histórico de grandes quadrinistas. Há uma dupla, em particular, que me encanta: o roteirista Héctor German Oesterheld e o ilustrador Alberto Breccia. Juntos, eles criaram séries como “Mort Cinder”, “Sherlock Time”, uma biografia de Che Guevara e… uma série de ficção científica que foi publicada como brinde em um álbum de figurinhas de futebol.

É isso o que acontece quando uma cidade é atacada por “pratos voadores”

Esta raridade se chama “Platos voladores al ataque!!” (em tradução livre, “Disco voadores atacam!!”) e é uma coleção de cards em que há uma ilustração na frente e a descrição da cena atrás. Foi lançada em 1971 na Argentina e era distribuída dentro dos envelopes de figurinhas do álbum “Súper Fútbol”.

Era muito difícil para um leitor completar a coleção – precisaria achar todos os cem cards. Felizmente, a editora Ancares lançou, em 2002, um livro (em espanhol, apenas) com a história inteira, e é possível ver a Terra sofrendo com o embate interplanetário que coloca Saturno e Plutão em lados opostos.

3 – Uma HQ ou um maço de cigarros?

Há uma HQ independente bem divertida chamada “Smoking Mata”, de Oskar Dimitry Rizzo. O protagonista, chamado Smoking, se vê em uma aventura de traição e tiros.

A sacada está no formato: as 16 tiras são apresentadas enroladas como cigarros, e o conjunto é vendido dentro de uma divertida caixa que emula um maço de Marlboro.

Este cigarro não faz mal ao teu pulmão

Você pode até seguir a ordem original (há um discreto indicador), mas fica mais divertido pegando aleatoriamente um “cigarro” (tira) e lendo o que cai na mão.

4 – Desmonte, monte e leia à vontade: “Building Stories

O norte-americano Chris Ware é, na minha opinião, um dos maiores quadrinistas vivos. Seus trabalhos me impressionam tanto pelo roteiro quanto pela arte. Isso até eu conhecer “Building Stories”, onde até o formato é espetacular.

“Building Stories” (“construindo histórias” ou “histórias do edifício”: as duas traduções servem) é uma caixa. Dentro da caixa, há 14 peças em formatos diferentes: pode ser uma revista de tamanho médio e 20 páginas, um pôster enorme, um livro de capa dura de 32 páginas, uma espécie de pôster horizontal desdobrável etc.

Até a capa é complexa

Cada peça tem histórias diferentes, todas com algo em comum: se passam dentro de um mesmo edifício. Até um inseto ganha histórias, que estão reunidas na pequena revista “Branford: The Best Bee in the World” (“Brandford: a melhor abelha do mundo”, em tradução livre) ,

Há uma HQ onde você menos espera, inclusive na borda da caixa

Não há toa, “Building Stories” ganhou um caminhão de prêmios, inclusive o prêmio especial do júri no Festival de Angoulême, na França, e quatro Eisner Awards, o Oscar dos quadrinhos norte-americanos: melhor álbum inédito, escritor/artista, letrista e design.

Fabuloso, mas infelizmente inédito em português.

5 – Uma BD que ganha outro sentido com óculos 3D

A espanhola Ana Pez lançou um livro muito fofo: “O meu irmão invisível”.

Você lê pela primeira vez, e é uma menina contando como seu irmão mais novo é engraçado: um garotinho que se esconde dentro de uma caixa de papelão e sai por aí achando que está invisível.

Não conte a ninguém, mas o menininho embaixo dessa caixa está invisível!

Aí você coloca os óculos 3D e relê: as lentes verde e vermelha mostram a mesma história, mas com o acréscimo do que o irmãozinho está vendo (ou imagina estar vendo!), e a história fica mais fofa ainda…

Há uma edição portuguesa deste livro, pela editora Orfeu Negro.

6 – Você lê duas tiras, vira de ponta-cabeça e chega ao final da história

Original e maravilhoso como “Building Stories”, “The Upside-Downs” é uma preciosidade impressionante. Trata-se de uma tira que foi publicada semanalmente, de 1903 a 1905, nos EUA, criada pelo artista holandês (nascido no Japão) Gustave Verbeek.

O conceito é até difícil de explicar: cada história é narrada em uma página, onde há duas tiras. Você as lê e lá se foi a primeira metade da história; aí você vira a página de ponta-cabeça, lê as mesmas duas tiras e lá está a conclusão.

Para você não precisar virar seu celular (ou computador) de ponta-cabeça, peguei uma página que já traz a leitura correta: repare que a terceira linha é a segunda de cabeça para baixo, bem como a quarta é a primeira invertida

O segredo é a impressionante capacidade que  Verbeek tinha de criar desenhos de tal maneira que um personagem (ou cenário) é algo se visto de cima para baixo, mas outra coisa completamente diferente quando se dá um giro de 180º.

Mais do que isso: ele conseguia concatenar histórias que fizessem sentido após a virada da página de ponta-cabeça. As HQs tinham início, meio e fim, não usavam esse artifício ilustrativo como mera pirotecnia.

Infelizmente, não há um livro em português com essa preciosidade. Ele é citado em livros sobre quadrinhos (com o nome de “As Invertidas da Pequena Lady Lovekins e do Velho Muffaroo”), mas não há um volume só dele para você ter, com orgulho, na estante.

Alguém se habilita?

Por favor?

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

Quer falar comigo, mas não pelos comentários do post? OK! Meu e-mail é pedrocirne@gmail.com

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