Na semana passada, iniciamos a publicação do Dossiê Mulher-Maravilha, um especial em dez posts contando a história da personagem. Hoje, dando continuidade ao projeto, abordaremos:

  • Dos péssimos efeitos do estúpido livro “A Sedução dos Inocentes” para os quadrinhos norte-americanos;
  • Das curiosas inovações para dar mais atratividade às histórias da Mulher-Maravilha;
  • De novo, do eterno enamorado Steve Trevor…
    No post de amanhã, teremos o primeiro “reboot” da Mulher-Maravilha. Ou seja, uma “refrescada” na história, para atrair novos leitores.

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“Para meninos, a Mulher-Maravilha é uma imagem amedrontadora. Para meninas, ela é um ideal mórbido. Onde Batman é antifeminino, a atraente Mulher-Maravilha e as contrapartes dela definitivamente são antimasculinas”.

(“Seduction of the Innocent”, de Fredric Wertham, capítulo 6 [“Design for Deliquency”]; o livro de Wertham foi um manifesto anti-histórias em quadrinhos, lançado em 1954, cuja repercussão abalou o mercado norte-americano de HQs)

O início da Era Kanigher

O criador da Mulher-Maravilha, o psicólogo William Moulton Marston, morreu em 2 de maio de 1947, aos 53 anos. Deixa, portanto, de ser a mente criativa por trás das histórias da princesa amazona. Seu colega Harry G. Peter continua ilustrando as HQs.

O cenário que Marston deixara para seu sucessor era excelente: no ano de sua morte, a Mulher-Maravilha apareceu na capa de 30 edições de revistas, feito que só seria superado exatos 40 anos depois, quando o seriado de tv estrelado por Lynda Carter alavancou o sucesso da personagem.

Ainda um sucesso, a Mulher-Maravilha aparecia com frequência em quatro revistas: a mensal “Sensation Comics” e as bimestrais “Wonder Woman”, “Comic Cavalcade” e “All Star Comics”.

Seu sucessor foi Robert Kanigher, que ficaria conhecido como roteirista e editor de histórias de ficção científica e, principalmente, de guerra e faroeste. Kanigher criou para a editora DC os personagens Sargento Rock, Companhia Moleza, Tanque Mal-Assombrado, Soldado Desconhecido e Ás Inimigo, todos protagonistas de histórias de guerra. El Diablo e Tomahawk, por sua vez, eram as estrelas do Velho Oeste da DC Comics.

Kanigher quebrou o recorde de Marston: escreveu as histórias da Mulher-Maravilha por 20 anos consecutivos – até hoje, recorde absoluto. A primeira hq da amazona escrita por ele foi publicada em “Wonder Woman” nº 29 (julho de 1948) e a última, em “Wonder Woman” nº 176 (maio-junho de 1968).

A primeira década da Era Kanigher, entretanto, não foi um período feliz para a personagem – e não por culpa dele.

A transição dos anos 40/50

O final dos anos 40 e o início dos anos 50 apresentaram uma retração no mundo dos super-heróis. Para a Mulher-Maravilha, figura constante em quatro revistas da DC Comics, estas mudanças começaram no final de 1948, com a mudança da linha editorial da “Comic Cavalcade”.

Desde seu lançamento, em 1942, a revista sempre trouxe na capa três super-heróis, geralmente em situações cômicas: Flash, Lanterna Verde e Mulher-Maravilha. Eles apareciam brincando sobre cavalinhos em um carrossel, esquiando, jogando beisebol, rindo com o Papai Noel ou apostando corrida. Era uma visão diferente das outras revistas, em que o tom de aventura predominava.

Mas isso acabou com o lançamento de “Comic Cavalcade” nº 30, datada de dezembro de 1948-janeiro de 1949, quando os três heróis deram vez a personagens mais voltados para o humor. Entram em cena animais divertidos em cores claras e figuras “humanizadas”, como “The Fox and The Crow”, dupla formada por uma raposa de gravata-borboleta e calças azuis e um corvo de chapéu-coco e charuto. A revista seguiria esta linha editorial sem heróis até 1954, quando foi cancelada após o nº 63.

Após deixar “Comic Cavalcade” no final de 1948, a Mulher-Maravilha também passou a ter menos espaço em 1949, com a “Sensation Comics” deixando de ser mensal e se tornando bimestral após oito anos sendo lançada mensalmente; em fevereiro-março de 1951, com o cancelamento da “All Star Comics” (onde aparecia como membro da Sociedade da Justiça); e em janeiro-fevereiro de 1952, quando deixou de aparecer em “Sensation Comics”, que trocou os super-heróis por histórias de terror e fantasia. A chamada Era de Ouro dos quadrinhos de super-heróis havia acabado.

Em “Homens do Amanhã – Geeks, Gângsteres e o Nascimento dos Gibis”, Gerard Jones atribui esta queda ao desinteresse pelos super-heróis no fim da Segunda Guerra Mundial:

“A partir de 1945, com o fim da guerra à vista, as vendas de gibis de super-heróis começaram a cair. Até o final de 1946, tinham caído em mais de 30%. Em 1947, as editoras começaram a sair em busca de novos campeões de vendas: jorraram histórias em quadrinhos com temas cômicos, de faroeste, românticos, de crime ou de horror. Ao final de 1948, a maior parte dos super-heróis tinha desaparecido; as revistas apelaram para outros gêneros. Sobraram só os mais famosos, e estes se voltaram de forma mais consciente para o público juvenil.”

Se, por um lado, os super-heróis estavam perdendo popularidade, outros gêneros emergiram neste final dos anos 40.

Com o ocaso dos super-heróis e o retorno dos soldados, editores e criadores de quadrinhos saíram em busca de formas de conservar seus leitores adultos, descreve Gerard Jones. Impulsionados pelos novos gêneros, um número ainda maior de americanos passou a ler gibis. Ao final da década, havia cerca de 40 editoras vendendo 300 títulos – 50 milhões de revistas ao mês. Uma pesquisa mostrou que mais da metade dos leitores tinham mais de 20 anos, que o leitor adulto consumia uma média de 11 gibis por mês, que quase metade dos leitores era mulher e que o pessoal de escritório, de terno e gravata, constituía o grande público consumidor.

Este foi o início da pior fase dos comics (como as hqs são conhecidas nos Estados Unidos, independente de seu gênero) de super-heróis. Não há um nome consagrado para retratar o que foram os anos 50 para o gênero de super-heróis. Eu arriscaria um: a Idade Média. Foi um momento de retração cultural, perseguição e uma caça às bruxas que parece uma versão cultural (e obviamente mais branda) da Inquisição.

O maior inimigo de um super-herói não é seu arquivilão, nem a kryptonita. É a ignorância.

“A Sedução dos Inocentes”

O psiquiatra Frederic Wertham publicou, em 1954, o livro “Seduction of the Innocent (“A Sedução dos Inocentes”), o maior ataque feito até então (e, provavelmente, até hoje) às histórias em quadrinhos. Wetham associava os crimes cometidos por crianças ao fato de elas lerem histórias em quadrinhos, especialmente as de terror. Tudo, é claro, provado “cientificamente”.

“A Sedução dos Inocentes”, por si só, já teria feito um belo estrago na cultura norte-americana de quadrinhos. Mas não veio sozinho. “O livro de Wertham chegou às livrarias num momento em que os Estados Unidos viviam, em pleno século xx, o macarthismo, um período de radicalização política e moral que lembrava os tempos da Inquisição”, diz Gonçalo Junior em seu livro “A Guerra dos Gibis”. O livro de Gonçalo enfoca as consequências da focada antiquadrinhos no Brasil, mas não deixa de examinar a crise vivida pelos comics – até porque uma influenciou a outra.

A ameaça do comunismo internacional difundida pela Guerra Fria coincidiu com a explosão do rádio e do cinema, a chegada da televisão e a modernização da imprensa. Todas essas novas formas de comunicação tiravam o sono dos pais, educadores e padres, preocupados com a preservação dos valores morais cristãos. (…) Seduction of the innocent foi recebido por parte da imprensa como uma bomba atômica. Em especial pelos grandes jornais de linha conservadora e declaradamente anticomunista. Naqueles dias em que o senador Joseph McCarthy era o grande defensor do país, a mídia em geral acostumou-se a dar destaque para qualquer denúncia que ajudasse os americanos a se livrar da ameaça que vinha de Moscou. E anunciou a obra como a comprovação científica feita por um médico respeitado de um grave perigo contra a infância e a adolescência.

Uma das poucas super-heroínas em meio a centenas de super-heróis, a Mulher-Maravilha era um prato cheio para Frederic Wertham. Aparece em seis dos catorze capítulos de “A Sedução dos Inocentes”.

No capítulo 2, “You Always Have to Slug “em” (“Você Tem Que Acertá-Los Sempre Com Força”), ela é colocada ao lado de Batman e Superman. São considerados, hoje, os três personagens icônicos da DC Comics: o super-homem, a super-mulher e  o homem comum aprimorado ao extremo. Todos os outros super-heróis seguem fórmulas próximas a algum membro dessa trindidade. Para Wertham, entretanto, são “uma forma especial de quadrinhos sobre crimes”.

No mesmo capítulo, ela sofre um ataque individual:

“Supermulher (Mulher-Maravilha) é sempre um tipo de horror. Ela é fisicamente muito poderosa, tortura os homens, tem seu próprio procedimento feminino, é a mulher cruel, ‘fálica’. Enquanto ela for uma figura amedrontadora para meninos, ela é um ideal indesejável por meninas, sendo o oposto exato de que meninas querem ser.”

Na interpretação dele, a Mulher-Maravilha é exatamente o oposto do que Moulton buscava. Mas os olhos de Wertham, é bom lembrar, viam as histórias em quadrinhos com muitas reservas, o que influenciou suas “conclusões científicas”.

Importante dizer desde já: anos depois, provou-se que as pesquisas de Wertham foram fraudadas para chegar nas conclusões que ele queria.

Sua “conclusão definitiva” sobre a personagem vem no capítulo 9, “The Experts for the Defense” (Os Peritos para a Defesa):

“O protótipo de superela com “feminilidade avançada” é  a Mulher-Maravilha, também endossada por este mesmo perito. A Mulher-Maravilha não é a filha natural de uma mãe natural, nem era igual Atena, nascida da cabeça de Zeus. Ela foi preparada em uma fórmula de vendas. O criador dela, psicólogo retido pela indústria, descreveu isto: “Quem quer ser uma menina? E isso é o ponto. Nem mesmo meninas querem ser meninas… O remédio óbvio é criar um caráter feminino com toda a força de Superman…. Dê (aos homens) uma mulher atraente e mais forte que eles para os subjugar e eles estarão orgulhosos de se tornarem seus escravos desejosos”. Nem folclore nem sexualidade normal, nem livros para crianças, ocorreriam desta maneira. Se fosse possível transportar uma figura de papelão como a Mulher-Maravilha em vida, todo homem jovem de cabeça normal saberia que há algo errado com ela.”

As acusações de Wertham, sem qualquer respaldo científico, sem provas, sem raciocínio lógico, um amontoado de preconceitos, talvez virassem apenas motivo de piada ou integrassem o repertório folclórico de críticas feitas por desajustados, mas não naquele momento. Não durante o macarthismo.

As consequências

Gerard Jones descreve ricamente as consequências das acusações de Frederic Wertham em “Homens do Amanhã”:

“As igrejas organizaram boicotes aos estabelecimentos que vendiam comic books. Grupos de defesa do cidadão pediam ação da polícia e dos legisladores. O Congresso Nacional de Pais e Professores declarou que “a liberdade de imprensa […] nunca teve a finalidade de proteger a indecência ou de perverter a mente infantil”. Mais de 50 cidades aprovaram leis para reduzir a venda de gibis. Detroit e Indianápolis proibiram três dúzias de títulos para leitores de qualquer idade dentro dos limites municipais (…)

Depois vieram as fogueiras. Uma cruzada espontânea realizada em Binghamton, Nova York, enviou voluntários de porta em porta perguntando: “Existe algum gibi nesta casa?”. Depois que os donos da casa se convenciam de que médicos, policiais e pastores tinham razão sobre os perigos dos quadrinhos, os voluntários pegavam todas as publicações ofensivas daquele domicílio e levavam para o pátio da igreja local, onde eram empilhadas, embebidas com gasolina e queimadas. A Time publicou fotos daquelas fogueiras enquanto crianças observam a uma certa distância e com expressão indefinida. Outras cidades não demoraram a seguir o exemplo de Binghamton. Em Chicago, as fogueiras foram organizadas por uma diocese católica.”

Esta crise culminou com a criação, em agosto de 1954, da cmaa, sigla em inglês para Associação Americana das Revistas em Quadrinhos, que visava estabelecer um “padrão de moral”. Daí surgiu, em 23 de outubro do mesmo ano, o regulamento conhecido como Comics Code Authority, chamado  no Brasil como Código de Ética.

Tratava-se de quarenta e uma regras que deveriam ser adotadas pelas editoras de quadrinhos a partir de então. As que seguissem as determinações poderiam ostentar na capa o selo de “Aprovado pelo Código de Ética”. Gonçalo Junior crava em seu livro “A Guerra dos Gibis”: “O código castrou com rigor a criatividade dos comics americanos nas três décadas seguintes e os jogou numa crise sem precedentes nos oito anos após a sua criação”.

O Código de Ética impunha que, sob qualquer circunstância, o “bem” deveria triunfar sobre o “mal” e proibia extrema violência, drogas, mulheres com formas físicas “exageradas”, homossexualismo, obscenidades, vulgaridades, nudismo, sedução, estupro, perversões sexuais e mais. Nada que atingisse a revista “Wonder Woman” diretamente, mas foi um belo ataque à indústria dos quadrinhos como um todo.

Os vendedores de quadrinhos nos Estados Unidos foram orientados a não vender hqs que não tivessem o selo “atestando” o conteúdo “sadio” das histórias. Assim, as editoras, mesmo as grandes, tiveram que se submeter ao Código de Ética. Muitos títulos foram cancelados, mas a roda dos quadrinhos continuou a girar.

A Marvel Comics, de Homem-Aranha, X-Men e Hulk, continuou publicando revistas com o selo até 1991, quando rompeu com o Código de Ética. Não que sempre o tenha  seguido: em ocasiões como uma história especial do Homem-Aranha, em 1971, quando seu melhor amigo se envolve com drogas, a editora publicou três números de “The Amazing Spider-Man” sem o selo. Mas esta foi a exceção. A regra foi amordaçar as histórias voltadas para o público juvenil, como as de super-heróis, na fórmula “mocinho” vence o “bandido”.

As mudanças da Era Kanigher

Enquanto fora das páginas a Mulher-Maravilha e seus colegas super-heróis enfrentavam o maior adversário de suas até então curtas carreiras, dentro da revista “Wonder Woman” a heroína amazona seguia sua saga para levar ao mundo dos homens os valores do amor contra os da força.

No final dos anos 40, a revista “Wonder Woman” tinha seis edições por ano, e a personagem também aparecia em“All Star”, “Comics Cavalcade” e “Sensation Comics”, chegando a estar em 30 revistas em 1947 e 29 em 1948.

Na década seguinte, “All Star”, “Comics Cavalcade” e “Sensation Comics” foram canceladas. Embora “Wonder Women” tenha subido de seis para oito edições por ano em 1954, o número de histórias por ano com a personagem caiu bastante, comparando-se com os anos 40.

Ainda assim, a mitologia da Mulher-Maravilha continuou a evoluir. Se, durante a Segunda Guerra Mundial, vilões como a MulherLeopardo dividiam as capas (e os conteúdos) das revistas com cenas bélicas como mísseis caindo, espiões em perseguições e coadjuvantes militares, isso foi mudando com o fim dos anos 40 e o início de Robert Kanigher por trás das histórias.

A fantasia que regia os super-heróis de então, e que era moderada, pois apenas os super-heróis e vilões eram de fato fantásticos, foi dando lugar a uma ficção científica carregada por uma imaginação cada vez maior.

Os inimigos de nações fictícias (como Anglonia e Bitterland) continuaram existindo (Ilha Zani, Zarikan etc.), mas foram dando vez a alienígenas de outros planetas ou dimensões. Os perigos que a Mulher-Maravilha enfrentava deixaram de ser norte-americanos ou terráqueos e foram substituídos por ameaças em escalas interplanetárias – ou interdimensionais, além das viagens no tempo. Ao mesmo tempo, para dar conta desses perigos, seus poderes foram sendo “ampliados”: descobria-se, aos poucos, que a Mulher-Maravilha era muito mais “maravilha” do que se supunha.

Novos tipos de aventura

Assim, a Mulher-Maravilha, outrora algoz dos nazistas, encontra-se com criaturas como Tara Terruna, a “mulher-maravilha” de um mundo paralelo extradimensional (“Wonder Woman” nº 59, de 1953); a versão jupiteriana da Mulher-Maravilha, encontrada em uma viagem a Júpiter (“Wonder Woman” nº 90, de 1957); uma mulher-maravilha idêntica a ela, mas oriunda da Dimensão X (“Wonder Woman” nº 100, de 1958); e os robôs extradimensionais “mulheres-maravilha” (“Wonder Woman” nº 102, de 1958).

O aumento dos poderes também foi gradual. A primeira história escrita por Kanigher foi publicada em julho de 1948. Em novembro-dezembro do mesmo ano, descobre-se que o cérebro das amazonas foi treinado para se lembrar de falas de centenas de pessoas (“Wonder Woman” nº 32). No ano seguinte, revela-se que as amazonas podem memorizar páginas inteiras com uma simples espiada (“Sensation Comics” nº 85). Ainda em 1949, a Mulher-Maravilha sobrevive à explosão de uma bomba e revela que as amazonas aprendem a rolar para fora da área de uma explosão de bomba (“Wonder Woman” nº 34). Sua velocidade, que já era sobre-humana, aumenta tanto que ela é capaz de tocar todos os instrumentos de um conjunto musical pulando de um instrumento para outro (“Sensation Comics” nº 98). Em 1951, é contado que as amazonas catalogaram todo o conhecimento desde o início dos tempos (“Sensation Comics” nº 102). O fôlego sobre-humano da Mulher-Maravilha aparece em “Wonder Woman” nº 53, e o fato de ela poder mover-se tão rápido, a ponto de ficar invisível a olhos humanos, surge em “Wonder Woman” nº 56, ambos de 1952. Em “Wonder Woman” nº 77 (de 1955), ela vibra o corpo tão velozmente que passa para outra dimensão.

Nada nas histórias justifica esse aumento de poderes: não é um treinamento novo, ou um passe de mágica. Kanigher simplesmente decidia que ela sempre fora daquele jeito e pronto: a Mulher-Maravilha se tornava ainda mais super.

Steve Trevor: a eterna privação do amor absoluto

Uma coisa, entretanto, não mudou no início da era Kanigher: a relação mal resolvida com Steve Trevor (assim, sendo feito de bobo…), seu eterno e nunca concretizado amor. De 1948 a 1951, Trevor pede a Mulher-Maravilha em casamento em cinco ocasiões, com direito até à uma aposta.

Em “Sensation Comics” nº 96, de março-abril de 1950, a rainha Hipólita diz à sua filha:

“Eu sei que o Steve ama a Mulher-Maravilha, a fascinante princesa amazônica. Mas se você se casar, você não será mais uma amazona. Você será a simples tenente Diana Prince para sempre. Você acha que o Steve irá te amar então, naquela identidade?”

Na edição seguinte, “Sensation Comics” nº 97, a Mulher-Maravilha reflete:

“Pela lei de Afrodite, nenhuma amazona pode se casar e ainda permanecer uma amazona. Se eu me casar com o Steve, deixarei de ser uma amazona e perderei o laço mágico, o avião e os braceletes com os quais eu combati o crime e a injustiça! Tenho o direito de me tornar a senhora Steve Trevor e pensar só em minha própria felicidade? Ou meus primeiros pensamentos deveriam ir para as pessoas a quem só eu posso ajudar?”

O altruísmo da Mulher-Maravilha é o maior empecilho ao seu casamento, mas não o único. A partir de 1952, Trevor e ela são descritos, pela primeira vez, como “engaged” (noivos). Surge uma nova questão: uma espécie de complexo de inferioridade em Trevor.

Após ser salvo da morte em três ocasiões diferentes pela sua noiva, Trevor desabafa:

“Eu não serei chamado de Senhor Mulher-Maravilha quando nos casarmos! Eu tenho que recuperar o respeito que perdi! Nosso noivado acabou! Eu não vou vê-la novamente até que eu possa provar a todo o mundo que eu sou tão capaz quanto você…!”

Nesta história, publicada em “Wonder Woman” nº 56, Trevor cria três mecanismos para duplicar as habilidades sobre-humanas da MulherMaravilha e testa seus “poderes”. Coloca-se em risco apenas para se superar, e acaba tendo de ser salvo pela amazona em todas as ocasiões, com ela ajudando-o sem que ele perceba, para não piorar sua já abalada autoestima.

Após estas desventuras de Trevor, que culminam com o noivado sendo reatado, a Mulher-Maravilha pondera: “Algum dia, quando o Steve perceber que as pessoas apaixonadas não precisam competir entre si, eu lhe contarei a verdade…!”.

Kanigher deu um passo além no romance da Mulher-Maravilha, ao transformá-la em noiva. Mas, na mesma tacada, conseguiu uma desculpa para manter o “status quo” de “heroína-apaixonada-que-não-pode-se-casar-por-mais-que-queira”.

Afinal, para a editora, esta era a melhor opção, comparando-se com a possibilidade de casá-la e perder a tensão amorosa que envolvia a personagem. Ao mesmo tempo, reforça uma idéia lançada há muito tempo por seu antecessor, William Moulton Marston: as mulheres em geral, e as amazonas em particular, são mais maduras e evoluídas que os homens. Muito mais.

Prenúncio de uma nova era

Além de o tom das histórias ter mudado da guerra para a fantasia, o que resultou no seu aumento de poderes, a personagem Mulher-Maravilha não passou por maiores mudanças nos primeiros anos de Robert Kanigher como escritor.

No visual da heroína, as botas vermelhas de salto alto usadas em sua origem deram vez a sandálias também vermelho, mas sem salto. A personagem também “ganhou altura” com o passar dos anos, e o visual de moça pequena e frágil das primeiras histórias foi dando vez a uma mulher agora quase tão alta quanto seu amado Steve Trevor. Seu ar ingênuo de menina descobrindo o mundo das primeiras histórias foi substituído pelo de uma heroína decidida e arrojada.

Fora dos quadrinhos, o furacão causado por “Sedução dos Inocentes” e pelo macarthismo tinha deixado suas marcas, como o Código de Ética, mas o mercado de quadrinhos seguiu em frente. E, se após a Idade Média veio a Renascença, nos quadrinhos norte-americanos surgiria o período conhecido como a Era de Prata.

E a Mulher-Maravilha não ficaria de fora: um novo desenhista, uma nova origem, um novo uniforme, a perda de todos os seus poderes, a Ilha Paraíso indo para outra dimensão, a Moça-Maravilha, a Neném-Maravilha…

O maior inimigo de um super-herói é a ignorância. E seu maior aliado é a criatividade.

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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