Estreou, na semana passada, o seriado “O Legado de Júpiter”, adaptação da HQ criada por Mark Millar (roteiros) e Frank Quitely (arte). Espero que seja boa, mas ainda não comecei a ver. O dia, lamentavelmente, tem só 24 horas…

Fui repetidamente procurado para saber se é verdade que se trata de uma série “para adultos”. Como não vi a série, nada de opiniões sobre ela. Mas acompanho a carreira de Millar há um bom tempo e posso refletir um pouco sobre seu trabalho.

E, antes de começar, um comentário: ele é um sucesso de público. Suas HQs vendem. Não à toa, estão sendo adaptadas para a TV.

Mas voltemos ao tema: suas HQs são “para adultos”?

Da maneira como vejo, o gênero dos super-heróis é para toda a família. Adolescentes e adultos podem ler numa boa as HQs. E os filmes, especialmente os da Marvel, também miram o grande público – assim como as franquias de James Bond e Star Wars, os filmes de ficção científica, comédias…

Mas Millar, assim como seus contemporâneos Garth Ennis, Alan Moore e Neil Gaiman, atingiu o status de roteirista de quadrinhos “para o público maduro”. Mas há uma diferença entre ele e os outros três, e é aí que eu quero chegar.

Moore e Gaiman escreveram obras e mais obras, de super-heróis ou não, em que há mais de uma camada em cada história. Pegue o “Monstro do Pântano”, de Moore, ou o “Sandman”, de Gaiman, para ficarmos em dois famosos. Eles dão um nó na cabeça. São páginas que entretêm, mas também instigam.

Eu colocaria Garth Ennis, de “Preacher” e “Hellblazer”, em outra prateleira. As histórias dele são tremendamente bem contadas. É um baita narrador. Mas não há tantas camadas, nem profundidade. Seu John Constantine e seu Jesse Custer não mudam, são estáticos. São HQs voltadas para o leitor com mais de 18 anos – há muita violência e sexo, o que poderia, em tese, escandalizar os menores de idade. Mas não são reflexivas como as de Gaiman ou Moore. Isso, claro, não faz delas HQs “ruins”: “Preacher” é uma ótima série de aventura, assim como “Hellblazer”.

Aí chegamos a Mark Millar. Sim, ele escreveu boas séries de super-heróis, como “Supremos”, uma interessante interpretação dos Vingadores. E é ótimo criando situações, mas não as tocando adiante. Por exemplo: na Marvel, criou “Guerra Civil”, uma minissérie que poderia ter sido ótima por sua premissa. Divergências ideológicas colocaram os super-heróis em lado opostos. Mas esse é o ponto de partida. Na prática, ele ignorou a personalidade de super-heróis famosos apenas para os encaixar em seu roteiro – Capitão América, Homem-Aranha e Justiceiro, por exemplo, tomam atitudes que desconsideram décadas de cronologia. E há casos ainda piores.

Apesar de todo o barulho que fez quando foi lançada, a minissérie “Guerra Civil”, escrita por Millar, é fraca. Já o filme que herdou seu nome, felizmente, é ótimo.

E há o seu material pretensamente para adultos. Afinal, tem sexo e violência. Vou pegar três exemplos, de obras diferentes, que usei na última vez em que me perguntaram sobre Mark Millar:

1 – Um vilão obriga um homem a engravidar a própria irmã;

2 – Uma mulher transa toda noite com um espantalho;

3 – Um “super-herói” quer usar uma britadeira para profanar um vilão já derrotado.

Essas cenas tornam a HQ necessariamente adulta? Não acho. Mas não é isso o que importa para mim. A pergunta que me faço é: são bons quadrinhos? São histórias que me entretêm e me fazem refletir, como as de Neil Gaiman e Alan Moore, ou que me divertem bastante, com ótimas cenas e personagens, como Grant Morrison, Kurt Busiek e Brian Michael Bendis? Para mim, nada disso. São histórias que chocam, com uma ou outra situação interessante. Poderia ser o contrário: uma história interessante, mas com uma ou outra situação chocante.

Há um exemplo recorrente para esse tipo de caso: a criança de 12 anos que entra numa sala cheia de adultos e fala um monte de palavrão e cenas obscenas apenas para chamar a atenção. Ela está falando como um adulto ou como uma criança?

Ainda não vi “O Legado de Júpiter”. Pode ser ótimo, claro. O que eu quis refletir aqui foi sobre as HQs de Mark Millar. Tenho saudades de quando ele preferia contar uma boa história em vez de tentar chocar seu leitor. Eram histórias bem interessantes.

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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