Nós conhecemos a Argentina – os mais sortudos, ao vivo; outros, pela TV, por fotos ou fala de amigos. Mas há um lado dela sombrio, mágico e assustador… Pelo menos, nas histórias em quadrinhos de terror imaginadas pelo portenho Salvador Sanz. Talvez você já tenha lido algo dele: o Brasil recebeu alguns de seus livros, todos pela editora Zarabatana: “Noturno”, “Angela Della Morte”, “Legião” e a série “O Esqueleto”.

Uma curiosidade: talvez seja mais fácil para nós, latino-americanos, nos identificarmos com personagens batizados Lúcia e Lúcio (de “Noturno”), Félix (“Legião”) ou Deborah (“O Esqueleto”)… Algumas décadas atrás, as editoras brasileiras traduziam as identidades secretas dos super-heróis: o casal Superman e Lois Lane era Edu Kent e Míriam Lane, assim como o Homem-Aranha atendia por Pedro Prado (bonito nome, aliás). E quem defendia Rio Doce (Gotham), era Bruno Miller (Bruce Wayne), o herói uniformizado Morcego Negro (Batman)!

A Buenos Aires apresentada por Sanz é reconhecível por suas esquinas, ruas e monumentos. É nela que as histórias começam: primeiro, com fatos estranhos (uma pintora que anuncia ter criado uma cor, desconhecidos compartilhando os mesmos sonhos). Depois, algo vai crescendo: um terror que caminha passo a passo, substituindo, nas personagens, a esperança por um desespero crescente. E o leitor vai junto.

Mas não é só uma questão de ambiente ou nomes, claro. Sanz tem duas grandes qualidades. Primeiro, é um excelente ilustrador: seus monstros são arrepiantes. Há um quê de personagens de Lovecraft neles, como em “Legião”, ou uma sombria semelhança com os seres humanos, que os torna ainda mais horripilantes (“O Esqueleto”).

Sim, esse museu portenho existe: é o Museo de Ciencias Naturales Bernardino Rivadavia

Esse talento não fica restrito aos personagens: os cenários, meticulosos e assustadores, contribuem para o clima de horror. Em suas páginas, a escuridão parece mais do que viva: soa como se fosse inteligente. Você olha para a noite argentina e sente as sombras te observando.

Já dei uma dica acima da segunda grande qualidade: Sanz sabe narrar uma história. Seu terror não é de sustos, é de medo – pavor, até. Aquelas sombras vão te enrolando, como um gigantesco e pesado cobertor, até você ficar preso. Não há saída. Vira a página e veja que…

E aí, os monstros dele são lindos ou não?

Para não dizer que não falei um pouco dos enredos… Em “Noturno”, dois portenhos que não se conhecem começam a compartilhar os mesmos sonhos. Neles, vão para uma dimensão paralela habitada por criaturas que lembram híbridos de aves e seres humanos. Assustados, sentem que estão se transformando nesses monstros tanto nessa dimensão como quando acordam… Ou é só um pesadelo?

Em “Legião”, um músico toca sem parar por 24 horas. Quando decide descansar, descobre que uma nuvem gigante, com formato de um rosto, cobre Mar del Plata; o ar está contaminado; e chove sangue… Ou é só imaginação?

A Skript está lançando no Brasil o livro “O Chamado de Cthulhu”, de Lovecraft, com ilustrações de Sanz. Grande oportunidade para ver um dos seus lados (da ilustração), mas eu não abriria mão de ir atrás dos livros em que ele conjuga esse talento ao seu de roteirista.

Aquela escuridão fantástica vai te fazer imaginar uma Argentina diferente daquela que você conhece (ao vivo ou pela TV).

E, não que eu esteja paranoico, mas aquela sombra logo ali é mesmo apenas uma sombra, ou será outra coisa?

ps – Este post é o nono de uma série chamada “Quadrinistas Maravilhosos“. A ideia é publicar 15 textos em três semanas. Amanhã é a vez da dupla franco-belga Benoît Peeters e François Schuiten.

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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