Estes tempos de isolamento social e pandemia estão nos levando a ver (ou rever) obras que falam de epidemias, futuros distópicos etc. Mas eu me lembrei recentemente um mangá que me marcou, mas que trata de outro tipo de isolamento: “Na Prisão”, de Kazuichi Hanawa, lançado no Brasil pela Conrad em 2005.

Em tempo: acho que o termo mais preciso para esta obra seria “gekiga”, por ser uma HQ realista e voltada para o público adulto, mas usei “mangá” no título e no corpo deste texto porque nós, brasileiros, estamos mais familiarizados com este termo.

É bom eu dizer outra coisa já no início: não estou com meu exemplar aqui para o consultar. Emprestei, e você sabe o que acontece com livros emprestados? Eu também não, mas imagino que estejam na mesma dimensão paralela para onde vão os guarda-chuvas e controles remotos (este, eventualmente, até acham o caminho de casa).

“Na Prisão” é uma obra autobiográfica. Hanawa já era um mangaká famoso em seu país, o Japão, quando foi condenado a três anos de cadeia por porte ilegal de armas.

Reflexões sobre outro tipo de isolamento

O que temos, então, é uma exibição detalhista, limpa e sóbria, tanto nas palavras como na arte, desta reclusão forçada. Hanawa não tenta dourar a pílula: assume que cometeu o crime e usa sua memória e seu talento como ilustrador, ambos acima da média, para relatar o que viveu. E, página após página, sem que ele use estas palavras, vemos uma rotina diária de privações, tristeza, saudade.

Eu me lembro de alguns pontos que mexeram comigo: a resignação (não me recordo de reclamações de sua vida como condenado ou das condições em que vivia); a dor de uma vida sem opções (quanto tempo você ou eu aguentaríamos ficar longe das pessoas que amamos?); a importância dada aos detalhes de uma rotina tão desprovida de mudanças (o menu das refeições, por exemplo); a rigidez de uma penitenciária japonesa (sem juízos de valor: é um relato descritivo).

Nunca estive em uma cadeia brasileira. Pelo que leio a respeito, pouquíssimas conseguem funcionar como locais socioeducativos. Há uma distância tão grande neste ponto entre os japoneses e nós que não sei se a realidade apresentada por Hanawa sequer serve como um possível passo para melhorar o sistema carcerário brasileiro. Acho que há outras mudanças mais urgentes sendo estudadas e implementadas. Mesmo assim, para quem se interessa pelo tema, ou trabalha com ele, uma leitura deste livro vem bem a calhar.

Para mim, de tudo o que ele aborda, falou alto a questão da responsabilidade. Sabe aquela coisa, tão normal ao ser humano, de não assumir erro algum? “Cheguei atrasado, mas foi o trânsito”; “Peço desculpas se alguém se sentiu ofendido” (maneira covarde de se desculpar, colocando a responsabilidade do erro na pessoa agredida); “Sim, propositalmente não pago (preencha aqui), mas também, né, esse governo corrupto vai roubar meu dinheiro…”

Nada disso cabe no mundo ilustrado por Hanawa. Ele errou e está pagando.

Eu não estou dizendo, claro, que o sistema penitenciário japonês ou Hanawa sejam perfeitos. Estou mostrando o quanto eles me fizeram refletir: a importância de um sistema prisional com condições dignas e a de assumirmos nossos erros.

Hanawa não parece ter vergonha de ter errado – poxa, o cara expôs anos inteiros da vida dele na cadeia… Pensando nisso, por que é tão difícil alguém pedir desculpa quando esbarra na rua, uma frase grossa dita sem intenção ou quando se escreve alguma ofensa nas redes sociais? (Isso, claro, para ficarmos em exemplo ridiculamente mais leves.)

Para quem gosta de obras sérias e reflexivas, para quem não foge dos próprios erros, para quem gosta de boas leituras: sugiro “Na Prisão”. Tenho certeza de que você vai achar um monte de pontos interessantes do quais nem passei perto neste texto.            

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Escrito por

Pedro Cirne

Meu nome é Pedro, nasci em 1977 em São Paulo e sou escritor e jornalista - trabalho no Estadão e escrevo sobre quadrinhos na TV Cultura.
Lancei dois livros: o primeiro foi "Púrpura" (Editora do Sesi-SP, 2016), graphic novel que eu escrevi e que contou com ilustrações 18 artistas dos oito países lusófonos: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor Leste. Este álbum contemplado pelo Bolsa Criar Lusofonia, concedido a cada dois anos pelo Centro Nacional de Cultura de Portugal.
Meu segundo livro foi o romance "Venha Me Ver Enquanto Estou Viva”, contemplado pelo Proac-SP em 2017 e lançado pela Editora do Sesi-SP em dezembro de 2018.
Como jornalista, trabalhei na "Folha de S.Paulo" de 1996 a 2000 e no UOL de 2000 a 2019.

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